Vítimas da tortura relembram violência da ditadura militar

Muitos brasileiros que nos anos 1960 lutavam para restaurar a democracia no Brasil acabaram vítimas dos agentes da ditadura iniciada em 64. Alguns foram mortos ou desapareceram. Outros acabaram capturados e passaram por sessões de tortura cuja crueldade chegou a níveis estarrecedores.

Segundo um levantamento feito pela Human Rights Watch em 2019, o número de pessoas torturadas durante a ditadura teria sido superior a 20 mil.

O portal ICL Notícias publica a seguir depoimento de três vítimas da tortura praticada por servidores do Estado durante a ditadura militar que dão ideia do que esse milhares de ativistas sofreram:

“Eu estava roxa, pelos hematomas”

Amelinha Teles, torturada na ditadura militar

Maria Amélia Teles, a Amelinha Teles, fazia parte do Partido Comunista do Brasil, quando foi sequestrada por agentes da ditadura e levada para o DOI-Codi de São Paulo, junto com o marido, Cézar, e com Carlos Nicolau Danielli. Ela hoje tem 79 anos.

“Fomos sequestrados na Vila Clementina, bem perto do DOI-Codi, e levados para lá no dia 28 de dezembro de 1972. Logo que chegamos no pátio, arrancaram meu marido e o Danielli do carro e passaram a dar chutes e socos no estômago e na cara. Eram muitos homens, mas tinha um que comandava. Depois viria a saber que era o Carlos Alberto Brilhante Ustra, na época major. Ele usava nome falso, era chamado de dr. Silva ou dr. Tibiriçá.

Por achar absurdo que tantos homens estivessem agredindo os dois que estavam comigo, me dirigi ao Ustra e perguntei a ele: “O sr. que está comandando esses homens, vai deixar um negócio desses acontecer aqui? Vai permitir que eles sejam mortos?”.

Antes de responder qualquer coisa, ele me deu um safanão com as costas das mãos que me fez cair longe, no chão do pátio. Depois gritou: “Foda-se, sua terrorista!”. Os homens naquele momento vieram me agarrar.

Então, nós três fomos levados para a sala de tortura.

Era Ustra quem comandava as torturas. Eles arrancavam as roupas dos torturados, nunca fui torturada vestida. Chamavam aquilo de interrogatório.

Passei por diversos tipos de torturas. Tinha choque elétrico na vagina, no seio, na boca, no ouvido. Tinha palmatória, com uma madeira toda furada, de maneira que a pele vai soltando. Fui espancada por vários homens, além dele. Normalmente ficavam cinco a oito homens fazendo essas agressões.

Além de espancamento, colocavam arma na cabeça, dizendo que poderiam estourar meus miolos a qualquer momento.

Naquela primeira noite mesmo eu fui estuprada por um deles que era Lourival Gaeta, que tinha o codinome Mangabeira.

Ustra dava ordens e algumas vezes também torturava, quando não achava que os subordinados estavam sendo violentos o suficiente. Fazia isso gritando palavrões.

Um dia, Ustra foi buscar em casa meus dois filhos, Edson, de 4 anos, e Janaína, de 5 anos, e minha irmã, Criméia, grávida de oito meses. Ele espancou a minha irmã. E teve a desfaçatez de levar meus filhos para dentro de uma sala onde eu estava sendo torturada, nua, vomitada, evacuada.

Minha filha me olhou e perguntou: “Mãe, por que você ficou azul?”. Eu estava toda roxa, pelos hematomas.

Fiquei ali de 28 de dezembro a 14 de fevereiro.

Ustra era uma pessoa extremamente perversa, tinha todas as características de fascista.

Anunciou a morte de meu amigo Danielli com alegria. Morreu nas mãos dele, de tanto ser torturado. ‘Vai para a vanguarda popular celestial’, ele falou. Ustra é responsável por mais de 50 mortes. Não se trata de assunto pessoal, os outros concordavam com ele. É uma questão institucional.

Quando você está sendo torturada, quer morrer. Mas a força da vida é grande. Pensava que tinha que sobreviver para contar ao mundo o que acontecia ali.

Quando saí, não tive tempo de fazer psicanálise, tive que procurar emprego, lutar para recuperar a guarda de meus filhos, que Ustra tirou.

Meus filhos, sim, ficaram dilacerados e tiveram que fazer muita psicoterapia.

A tortura é uma ferida que não cicatriza na gente. E às vezes sangra”.

(Entrevista concedida a Chico Alves e publicada originalmente no UOL)

Durante o espancamento, os algozes chamaram um médico: meu colega de faculdade

Luiz Roberto Tenório foi vítima da ditadura militar

Luiz Roberto Tenório foi vítima da ditadura militar

Estudante de medicina na época da ditadura militar, Luiz Roberto Tenório, hoje com 82 anos, era líder do movimento estudantil na Uerj (antes chamada Universidade do Estado da Guanabara) e ligado ao grupo revolucionário Dissidência, ao qual também pertencia seu amigo Vladimir Palmeira. Apesar da atuação do coletivo na luta armada, o papel de Tenório era cuidar dos companheiros feridos.

Ele estava presente em momentos dramáticos do período, como o assassinato do estudante Edson Luís — Tenório ajudou a carregar o caixão do secundarista no cortejo que levou o corpo do jovem de 18 anos da Cinelândia até o cemitério São João Batista. “Mataram um estudante. Podia ser seu filho”, diziam faixas ao longo do trajeto.

Em 1971, foi preso pela Polícia do Exército e passou dois meses no DOI-CODI, pior centro de tortura do Rio de Janeiro.

Tenório conta que, durante um espancamento, os algozes chamaram um médico militar para avaliar seu estado. O mesmo foi feito com outro detido que também era torturado. Mesmo à beira da inconsciência, Tenório o reconheceu: era seu colega de faculdade Ricardo Agnese Fayad, com quem estudou por seis anos na antiga UEG. Tenório conseguiu cassar no Cremerj, em 1994, o direito de Fayad exercer a medicina.

No início de 2018, ele foi denunciado pelo Ministério Público Federal por participar de torturas, mas Alexandre de Moraes, ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), suspendeu o processo contra o general reformado. Para Moraes, a 8ª Vara Federal não poderia ter aceitado a denúncia por ser incompatível com jurisprudência do STF, que determina a constitucionalidade da Lei da Anistia e sua incidência em crimes políticos cometidos entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979.

Até hoje Tenório participa de passeatas no Centro da cidade. Foi em todas as manifestações ligadas à morte da vereadora Marielle Franco, por exemplo. Foi em todos os atos contra o ex-presidente Jair Bolsonaro na Cinelândia. Hoje ele trabalha como assessor do Ministério da Saúde no Rio de Janeiro.

“A luta não acabou. Se antes a intolerância era contra os comunistas, hoje é contra pretos e pobres”, afirma Tenório, um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores.

(Entrevista a Caio Barretto Briso)

“A dor era intensa, mas eu não falei”

Gilberto Natalini, vítima da ditadura militar

Gilberto Natalini, vítima da ditadura militar

Gilberto Natalini estava no terceiro ano de medicina, não era ligado a nenhuma organização de resistência à ditadura, apenas se definia como “contra o governo”. Se colocava também contra a luta armada. Apesar disso, por ter vendido o jornal de um grupo que defendia esse tipo de ação, foi preso em agosto de 1972. Hoje tem 72 anos.

“Fui levado para o DOI-Codi e o próprio Ustra me interrogou. No início, foi violência psíquica. Ele ficava com uma luz fortíssima em cima de mim, gritando, vociferando.

Alguns dias depois, já comecei a apanhar. Eles batiam, davam socos, tapas, choque no corpo, na orelha. Eu sem roupa.

Em uma noite, o próprio Ustra me colocou descalço em cima de duas latas grandes. Jogou água no chão e ligou os fios elétricos, para dar choques. Além disso, me batia com um cipó, que usava como chicote. A sala estava cheia de agentes e ele me usava como uma espécie de cobaia.

Os choques eram nas mãos, nos dedos, nas orelhas. Fiquei um mês com sangramento, porque eles machucaram meus ouvidos com choques elétricos. Acabei ficando com 40% a menos de audição no ouvido esquerdo e 25% a menos no ouvido direito, como sequela do que o Ustra fez comigo.

Eles queriam saber quem fazia os jornais do Molipo (Movimento de Libertação Popular) chegar às universidades. Ficamos lá quase dois meses apanhando por causa disso.

A dor era intensa, mas eu não falei.

Via o Ustra quase diariamente. Quando tinha interrogatório, na maioria das vezes ele entrava na sala, mas nem sempre sujava as mãos. Gritava, dava ordens, sempre muito bestial. Era um monstro.

Não era possível nem falar com ele. Não dava chance, era quase uma compulsão que ele tinha pela tortura.

Havia também uma estratégia que era vir um dos agentes e bater, bater, bater bastante. Dava choque. Aí saía esse e entrava outro, que se fingia de bonzinho, trazia um copo d’água e dizia ‘Você tem que falar ou então você vai morrer’. Depois recomeçava a tortura.

Eu vi gente morrer lá. Aquele Benetazzo (Antonio Benetazzo, líder estudantil e artista plástico ítalo-brasileiro) foi preso. A gente ouvia ele gritar a noite inteirinha, urrava de dor. No dia seguinte, saiu arrastado, morto. Mataram ele lá dentro.

Meu pai, seu Urbano, morava na cidade de Macaé (RJ) e conseguiu o bilhete de um general, escrito a lápis, como permissão para vir a São Paulo me ver.

Ele era um homem pobre, que se esforçou para me botar na faculdade. Me deu uma bronca. Perguntou como fui me meter em uma encrenca daquelas, prejudicando a família.

Disse pra ele que ele não precisava ir à prisão me torturar ainda mais porque ali tinha gente paga com o imposto dele para fazer isso. Abri a boca e mostrei a mucosa da boca em carne viva, por causa dos choques. Mostrei os braços queimados e machucados. Meu pai teve um ataque de choro e foi preciso vir muitos homens para tirar ele dali, porque dizia que queria ficar preso no meu lugar.

Meu pai era um cara de direita. Depois de ver o que aconteceu comigo e o que era ser de direita, ele foi para a esquerda, virou brizolista.

Aqui fora, não fiz tratamento psicológico nenhum, administrei bem o trauma da tortura. Sabia que não tinha feito nada errado.

Esse sonho que eu tenho até hoje embalou a minha saúde mental”.

(Entrevista concedida a Chico Alves e publicada originalmente no UOL)

 

Fonte: https://iclnoticias.com.br/vitimas-tortura-relembram-da-ditadura-militar/