No arquivo da escravidão, na pasta amarela de Pizarnik e em outros lugares

“Como é possível contar a história de uma emancipação elusiva e de uma liberdade mascarada?”– é o que se pergunta Saidiya Hartman em Cenas da sujeição. Publicado em versão ampliada nos 25 anos de seu lançamento, o livro mergulha nos paradoxais arquivos da escravidão para mostrar que, mesmo após a abolição, as características fundamentais do período escravista mantiveram-se praticamente inalterados, chegando desse modo aos dias de hoje.

Hartman encara o arquivo – tanto produto do processo técnico de arquivamento quanto meio de construir significados em torno de determinados textos – e vê nele os interesses que moldam e determinam o enredo da história. Reivindicando-o, escreve narrativas diferentes do passado, “escovando a história a contrapelo” para escavar nas margens da história o contra-arquivo, apontando formas de conhecimento e práticas consideradas ilegítimas de pesquisa histórica.

Ao atentar-se ao silêncio e às ausências produzidas pelo arquivo, a autora se esforça para decifrar os idiomas de poder da escravidão, iluminando as incontáveis formas pelas quais os escravizados desafiam a condição de escravização e seu “ordenamento e negação à vida”.

Hartman constrói sua “genealogia da recusa” em duas partes: em “Formações do terror e do gozo”, ela examina os espetáculos de blackface, o uso da violência sexual e as estratégias empregadas pelos escravizados para criar zonas de liberdade na dominação; em “O sujeito da liberdade”, detalha como os aparatos da escravidão sobreviveram após a abolição, ilustrando as formas como “o porão da escravidão se conserva formativo e duradouro”. (Carolina Azevedo)

Os movimentos líricos da alma no Brasil

Antologia do poema em prosa no Brasil, coeditado pela Ateliê Editorial e a Editora Unicamp, reflete o desafio assumido pelo poeta, editor e professor Fernando Paixão de reunir os mais significativos escritos inseridos na tradição tão diversa quanto particular do poema em prosa. Com quase 400 páginas, o volume percorre o caminho cronológico da prosa na poesia nacional: desde que o gênero – proposto pela primeira vez por Baudelaire ao editor de uma revista literária francesa – começou a dar seus primeiros passos no Brasil através de sua rápida adoção pelos simbolistas.

“Qual de nós, em seus dias de ambição, não sonhou com o milagre de uma prosa poética, musical sem ritmo e sem rima, bastante maleável e bastante rica em contrastes para se adaptar aos movimentos líricos da alma?”, perguntou Baudelaire, elaborando pela primeira vez o gênero híbrido que se revelaria um vigoroso chamado à experimentação endereçado à modernidade.

De Cruz e Sousa, um dos mais influenciados pela estética baudelairiana, até a empolgante novidade da prosa poética da paulistana Leda Cartum, percorremos um caminho que compreende mais de 200 poemas de autoria de uma centena de escritores, passando por diversos movimentos, como a poesia marginal, que mais deu destaque à prosa poética. (Victor Kutz)

Retrato da vida de um palestino

Em uma manhã chuvosa de fevereiro de 2012, percorrendo uma estrada em Jerusalém, um ônibus de excursão cheio de crianças e professores palestinos colidiu com um caminhão e entrou em chamas. Meia hora depois, nenhum sinal de socorro oficial – ainda que o acidente tenha ocorrido nas proximidades de um assentamento israelense.

O livro segue a história de Abed Salama, que tenta encontrar seu filho logo após o acidente. Alternando cenas da vida do protagonista com passagens que delineiam o contexto histórico em que vive sua família, Thrall mescla narrativa humana e análise profunda – em um livro essencial para a compreensão do conflito que ganha as manchetes de jornais no mundo todo desde 7 de outubro de 2023.

Vencedor do prêmio Pulitzer de Não Ficção em 2024, Um dia na vida de Abed Salama mergulha no conflito entre Israel e Palestina para mostrar suas consequências na vida de pessoas comuns: pessoas buscando viver com dignidade em meio a uma tragédia que, sem trégua há décadas, rouba o futuro de gerações de crianças. (C.A.)

A pasta amarela de Pizarnik

Prosa completa é o mais recente desdobramento dos esforços da editora Relicário em reunir em língua portuguesa a obra da argentina Alejandra Pizarnik.

Grande parte dos textos compilados neste volume foi reunida inicialmente pela própria escritora entre 1965 e 1970, quando se ocupou da organização de seus escritos em pastas coloridas: preta para os poemas e amarela para as prosas.

Poemas em prosa? Contos? Pequenas narrativas? É difícil encontrar classificação melhor que “prosas” para compreender as heterogêneas passagens da pasta amarela de Pizarnik. O que se retém de comum entre esses escritos, segundo aponta a também poeta argentina Ana Becciú no prólogo do livro, é um tom e uma atmosfera: “Um ritmo de imagens e uma sintaxe que realiza a passagem das imagens às ‘presenças fulgurantes’ ”.

Para dar presença a essas imagens, Pizarnik propõe uma prosa poética que transita entre o sensível, o surreal e o nonsense, como vemos em sua afinidade pelo escritor inglês Lewis Carroll, de quem a argentina parodia o primeiro capítulo de Alice no país das maravilhas sob o título de “O homem do antifaz azul”. (V.K.)

A Islândia de Halldór Laxness e seus peixes

Ganhador do prêmio Nobel de Literatura em 1955, Halldór Laxness é considerado um dos mais importantes e prolíficos autores da literatura islandesa moderna, ultrapassando 50 romances publicados até a sua morte, em 1998.

Depois de um hiato de 20 anos do último livro de Laxness publicado no Brasil, a Zain lança agora Os peixes também sabem cantar. No romance, o cotidiano de Álfgrímur Hansson é retratado a partir de episódios concisos – o jovem, abandonado pelos pais após o nascimento, narra seus dias com os avós adotivos em Brekkukot (uma espécie de pensão em Reykjavík que abriga viajantes sem dinheiro).

Álfgrímur se vê encantado pela figura de Garðar Hólm, um cantor lírico islandês de fama internacional que regressa à pequena ilha do Atlântico Norte trazendo consigo a busca pela “nota pura”: espécie de ideal musical metafísico compartilhado por ambos.

Centrado no menino, o romance de formação caminha em paralelo com percepções sobre a formação da própria nação islandesa moderna – assim, do contato entre os hóspedes da pensão e a família, emerge o retrato de um país em processo de transição entre o provinciano e o cosmopolita, entre o tradicional local e o moderno, e entre o seu passado marcado pela colonização dinamarquesa e a busca por autenticidade. (V.K.)

Histórias de um hospital-prisão

Em seu primeiro livro, publicado originalmente em 2017, que acaba de ganhar nova edição pela Todavia, Natalia Timerman escreve para tentar compreender o incompreensível. Imersa no absurdo do Centro Hospitalar do Sistema Penitenciário, a autora depara com histórias que retratam o horror de um sistema que não reabilita seus encarcerados, mas os marginaliza ao extremo.

Entre relatos de presos, carcereiros e médicos, Desterros transforma os fatos indigestos e as perguntas de Timerman em percepções sobre tudo que há de errado nas prisões brasileiras. Essa espécie de denúncia do “é assim que as coisas são” só ganha forma graças ao esforço de humanização que a autora encampa ao longo de sua escrita.

Entre os mais diversos relatos distribuídos ao longo do livro, o de Donamingo o atravessa, tecendo reflexões que vão além da questão prisional. A narrativa apresenta uma angolana presa por tráfico, que se descobre grávida na prisão. Entre a violência policial e a crueldade do confinamento, surge uma história de maternidade marcada pela desigualdade e pelo estranhamento de uma mulher que se vê forçadamente longe de sua família e de sua terra natal.

Se é impotência o que Timerman descreve sentir naquele espaço opressor onde as regras devem ser impreterivelmente seguidas, suas páginas, em vez disso, ilustram a potência da escuta que exercitou ali. (C.A.)

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