Nossa literatura jamais será vermelha

 

Com ambientação flutuante – ora na década de 1990, ora nos anos Bolsonaro –, Meu passado nazista, de André de Leones, publicado pela Record, é um romance cáustico, difícil e maravilhoso. Nessa ordem. Cáustico porque há nele um descompromisso estético do autor com as ordens narrativas vigentes. Aqui o realismo sofre as erosões que a linguagem inventiva fatalmente impõe. E a cada instante o narrador desmonta aquilo que passou parágrafos a construir. Sem dúvida, trata-se de um experimento sobre os poderes da linguagem que, como tal, revela um quase insuportável índice de impotência em tudo aquilo que escrevemos, falamos ou dizemos.

Leandro é um narrador errático, ingênuo, confuso, que mistura histórias em que, por vezes, o fundo é a figura, e a figura acaba por perder-se no fascínio que ele tem pela possibilidade de inventar as coisas que vê à medida que inventa sua própria história. Órfão de pai, filho de uma mãe ausente e neto de um nazista, ele busca fazer do horror do que diz algum tipo de constrangimento aos outros – porque, para pessoas como ele, o constrangimento social se confunde com a sensação de empoderamento. O Terceiro Reich reaparece aqui como um pesadelo diluído em tudo, que desapareceu como forma histórica, mas que se multiplicou como uma metástase semiótica. Duplas sertanejas? Nazismo. Era Collor? Nazismo. Assédio sexual? Nazismo. Capacidade de realizar leituras sociológicas? Nazismo. Pesquisas no Google? Nazismo. Agronegócio? Nazismo. Balança comercial favorável? Nazismo. Capacidade de empreender? Triunfo da vontade.

Evidentemente, ao fim de suas longas páginas sobra pouco enredo para quem lê Meu passado nazista. O desejo do autor de triturar a linguagem através do exercício minucioso da sabotagem consciente dos imperativos narrativos do romance moderno resulta em uma ludicidade adulta e desafiadora. Talvez seja possível lhe atribuir o adjetivo de pynchoniano, de wallaciano (e Luiz Rebinski corretamente o faz na aba de apresentação do livro), mas todas essas verdades não podem ofuscar a evidência de que se trata de um acontecimento literário na prosa, apontando um movimento de ruptura definitiva com a influência da quarta fase do Modernismo brasileiro.

Na epígrafe de Mircea Cărtărescu, encontra-se a defesa de uma literatura que seja feita justamente para a confissão do que há de pior no mundo, e não para a redenção ou a busca daquilo que há de melhor. Enfim, uma promessa de patografia sem fim, que se sustenta não mais pela peça argumentativa dos atenuantes, e sim pela força das afirmações subjetivas genuínas. De todo modo, parece dizer Leones, não haverá redenção nem literatura para aqueles que constroem personagens com a condescendência de quem deseja esconder o que há de pior em si próprio. Nesse sentido, a escolha do título se sustenta naquilo que socialmente nos causa mais repulsa. Não esperamos da literatura empatia com o nazismo. Aliás, se o mundo ainda não estiver totalmente erodido de si mesmo, não esperamos nenhum aceno, em campo algum, aos totalitarismos todos. Introduzir o adjetivo mais abjeto que a nossa contemporaneidade pode conceber significa não apenas agredir nossa memória, como também dar pancadas na parte mole de nossa consciência literária. Nosso conceito de literatura é de uma positividade infinita – e pouco importa que tenhamos lido Bataille nos corredores do complexo PUC-USP-Unicamp-e-o-escambau. Literatura ainda é, para muitos de nós, o habeas corpus que vai nos libertar das sanções do mal. É contra isso que Meu passado nazista se insurge.

À certa altura, o narrador diz: “Como se o livro fosse esgotar a primeira edição. Não, porra, mal vende uns quinhentos exemplares. Ninguém lê porra nenhuma. Resenhas? É, minha agente comentou comigo, eu li algumas coisas. Bacana. Melhor do que ser ignorado, mas não quer dizer nada. Não significa muita coisa. Quantas pessoas você conhece que ainda leem jornal? E, dessas, quantas prestam atenção na porcaria do segundo caderno? É um mundinho bem pequeno. Estreito. E diminui a cada ano. Engraçado como quase ninguém se lembrou do meu rolo. Um pessoalzinho falando merda no Twitter, que nem se chama Twitter mais”. Essas são intervenções banais, aparentemente para dar a quem lê uma certa ambientação na história. Irritam pela gratuidade linguística; e, com certeza, a ideia de que a civilização está destruída (seja pela invenção do Twitter e seus 140 caracteres do começo de sua era, seja pelos irritantes acenos de Elon Musk ao que há de mais nocivo na história da política internacional) não acrescenta ao romance os territórios vastos que seu espírito iconoclasta alcançou. Por isso, ao terminar Meu passado nazista, a impressão é de que Leones foi até onde editorialmente era possível. Embora faça pouquíssimas concessões à legitimidade burguesa que caracteriza os romances contemporâneos nacionais (produzidos sob medida para, supostamente, conquistar uma parcela da população que não se via nos livros anteriores – ou para atenuar o mal-estar de quem entoa a ladainha de que o homem branco-hétero-cis não tem mais espaço na literatura brasileira, nem nos prêmios, nem nos comerciais de alvejante, nem nas reuniões de condomínio), o autor insinua que podemos esperar, no futuro, obras nas quais se obtenha uma extração ainda mais pura de seu veneno-antídoto.

Nenhum oncologista – para usar um exemplo dramático – gosta de informar a um paciente que ele entrou no estágio IV. Maligno ou benigno são criações do mundo, não dos oncologistas; diagnóstico é um retrato, não uma invenção. Nisso, oncologistas e críticos literários se parecem: precisam ser capazes de dizer o que as coisas são, custe o que custar. Avaliar obras oriundas de um trabalho de autores com acenos à iconoclastia é uma atividade mais difícil que o comum. O simples e puro gesto da inovação não basta para que a qualidade seja constatada; por outro lado, o que um crítico literário deseja salvar senão a inventividade radical? É muito boa a notícia que Leones nos traz: de que há pessoas dispostas a pagarem o preço estético das coisas, em um tempo em que a ordem parece ser adular a pechincha e incentivar o calote. E isso é facilmente reconhecido por qualquer especialista sério. Meu passado nazista não é uma versão tupiniquim da dicção pós-moderna de gênios estadunidenses. E eu não preciso de nenhum outro exame para apontar sua malignidade. Se for compreendido, esse romance terá efeito corrosivo sobre os desdobramentos da literatura contemporânea brasileira eurodescendente, hoje encalacrada entre preservar seu passado e emular um presente ao qual não pertence. Se for esquecido, será o documento ruidoso da nossa falta de maturidade intelectual.

Luiz Maurício Azevedo é doutor em teoria e história literária pela Unicamp. Em 2021 e 2023, recebeu o prêmio Açorianos de Literatura. Em 2024, foi semifinalista do Prêmio Oceanos, com as obras Metal de sacrifício (Figura de Linguagem, 2023) e Baldeação (Editora de Cultura, 2023)

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