Era 1991, e o ateliê de Siron Franco se apresentava como espaço onde diferentes mundos entravam em relação de transformação recíproca. Estávamos lá, eu e o poeta-historiador Carlos Fernando Filgueiras Magalhães. Dali, seguimos ao Monumento às Nações Indígenas, local onde Siron, movido por uma paixão quase ritualística, narrava seu projeto por meio de gestos vivos e palavras que pareciam transportar corpos e espíritos ancestrais à nossa presença imediata. Permaneci silencioso, como convém ao aprendiz frente ao mestre de metamorfoses, atento aos modos como Siron fazia surgir mundos novos. Anos mais tarde, já imerso nas inquietações de minha pós-graduação em Antropologia na Universidade de Brasília, reencontrei Siron no contexto da criação de sua instalação dedicada ao indígena Galdino. A brutalidade do assassinato de Galdino Jesus dos Santos, líder Pataxó-hã-hã-hãe queimado vivo por jovens de classe média alta em Brasília, exigia uma resposta simultaneamente ética e cosmopolítica. Siron não se limitou à denúncia discursiva: sua obra instaurou um dispositivo visual de insurgência contra a normalidade violenta que sustentava a ordem social brasileira. Na materialidade daquela instalação, o trágico e o político encontravam um campo de expressão estética como agenciamento de forças sociais e históricas em disputa.
Foram o prazer estético profundo e o fascínio pelo poder de transformação simbólica presente na obra de Siron que me levaram à necessidade de compreender sua arte como uma máquina que operava na invenção de mundos (im)possíveis. Este texto, portanto, é o fruto dessas inquietações e reflexões, uma tentativa de seguir as linhas traçadas por Siron. Busco, então, elaborar uma aproximação à obra de Siron Franco, compreendendo sua produção como expressão estética, máquina de produção de mundos e dispositivo de insurgência simbólica no campo da arte contemporânea brasileira. Mais do que traçar uma trajetória linear ou biográfica, interessa-me abordar os modos pelos quais Siron tensiona as fronteiras entre arte e política e, instaurando o que poderíamos chamar de um regime de desestabilização contínua dos dispositivos de visibilidade, reconhecimento e memória social.
O percurso analítico articula três eixos fundamentais: a poética da vulnerabilidade humana, presente em suas figuras antropomórficas e na estética do desamparo; a elaboração estética e política do trauma coletivo na série Césio 137; e a dimensão cosmopolítica de sua arte pública, com foco no Monumento às Nações Indígenas, pensado como um contradispositivo frente aos regimes hegemônicos de apagamento. Em cada um desses campos, o que busco evidenciar é o modo como Siron Franco desloca o espectador de um lugar seguro de contemplação estética para uma zona de conflito, na qual a arte representa, transforma, fere e reinscreve o mundo como campo de disputa sensível e histórica.
Denomino de “topografias” os territórios simbólicos que a obra de Siron Franco atravessa – zonas de ruína e insurgência, nas quais camadas afetivas, políticas e históricas se sobrepõem em permanente colisão. Cada série, cada gesto plástico, compõe uma cartografia do irreconciliável. Por sua vez, este termo, irreconciliável, longe de ser escolha retórica ou recurso estilístico, designa um campo de conflito entre mundos que não foram feitos para coexistir. Siron não busca síntese, catarse ou reconciliação: sua arte opera como uma máquina de exposição de um embate ontológico em curso, em que regimes de existência historicamente hierarquizados colidem sem tradução possível. Não se trata de representar o conflito, mas de produzi-lo. A obra desestabiliza o olhar, implode categorias de reconhecimento e arrasta o espectador para dentro da fratura – não como metáfora, mas como experiência sensível. Siron não estetiza o trauma: expõe a ferida, impede seu esquecimento e recusa qualquer pacificação simbólica. Não há redenção. Há fricção. Ele não nos convida a compreender ou superar a crise – mas a habitá-la, como quem caminha sobre um chão que ainda arde.
Quando o fora fala
A arte, como máquina de produção de mundos e campo privilegiado de tradução entre regimes de sentido, encontra em Siron Franco um operador de passagens, tradutor de alteridades, mestre das metamorfoses culturais. Nascido em 1947, na cidade de Goiás, Siron tem uma história de subversão das categorias mesmas de centro e periferia. Em vez de simplesmente buscar reconhecimento nos circuitos hegemônicos de legitimação cultural, Siron tensiona e reconfigura as próprias condições de possibilidade desse reconhecimento, operando uma espécie de contra-antropologia estética: Siron afirma sua posição a partir das margens e transforma o centro em um território de deslocamento, obrigando-o a se traduzir, a se alterar, a entrar em relação com a alteridade que o interpela.
O que está em jogo é um processo no qual deslocamentos sociais e a insurgência de narrativas outras operam como forças de transformação do próprio campo artístico. Siron chegou aos museus e galerias consagrados como um vetor de contaminação e deslocamento. Ao invés de buscar um lugar no centro, Siron faz do centro um lugar de passagem, um espaço a ser afetado pelas potências do fora. Sua arte funciona como dispositivo que coloca em copresença regimes de sensibilidade que, antes, eram mantidos a distância por fronteiras disciplinares e geográficas. Trata-se de uma estética visual onde o centro aprende, por necessidade, a falar em línguas que desconhecia.
O reconhecimento conquistado por Siron Franco – evidenciado pela inserção de suas obras em coleções nacionais e internacionais de prestígio – não pode ser lido como simples indício de uma bem-sucedida assimilação de sua obra ao cânone artístico nacional. O que ocorre é algo mais profundo e mais perturbador: um processo de reconfiguração das categorias que tradicionalmente definem o que é, e quem pode produzir, a chamada arte contemporânea no Brasil. Siron redesenha o mapa. Sua produção opera como vetor de uma arte da dissidência, atravessada por uma ética do confronto e uma poética ancorada num território afetivo e político profundamente situado. Sua obra não fala apenas sobre os dilemas sociais, históricos e culturais do país; ela fala a partir deles, num regime de copresença e contaminação entre estética e política, forma e conflito. Siron traduz – no sentido forte do termo, como transmutação de regimes de sentido – as assimetrias estruturais que atravessam a experiência brasileira. Sua arte devolve à esfera estética uma função que certo modernismo oficial tantas vezes tentou neutralizar: a capacidade de operar como dispositivo de crítica insurgente, de desestabilizar a paz aparente dos consensos culturais, de transformar a representação em território de luta.
Assim, a trajetória de Siron Franco pode ser lida como sintoma de um movimento mais profundo: uma espécie de deslocamento tectônico nos regimes de produção, circulação e validação da arte no Brasil. Trata-se de um abalo nas formas hegemônicas de enunciação estética, um fenômeno em que sujeitos oriundos de territórios historicamente silenciados irrompem no campo simbólico para reescrever, em linguagem visual, as narrativas da arte e, por contágio, as narrativas da própria história nacional. Siron desestabiliza as fronteiras entre quem pode falar, de onde se pode falar, e o que pode ser dito sob o nome de arte. Em sua trajetória, formas de sensibilidade antes invisibilizadas insurgem para disputar o direito de nomear e configurar o real. Siron Franco é, nesse sentido, um operador de deslocamentos cosmopolíticos que expõem as fissuras internas do próprio centro.
Se, até aqui, observamos como Siron Franco desloca e redesenha o campo artístico por meio de uma insurgência geopolítica, é preciso, agora, mergulhar em sua gramática interna de formas e afetos – ali onde o corpo, o sonho e a história colidem como campos de inscrição de uma guerra ontológica ainda em curso.
Entre afecção, história e sonho
A vulnerabilidade da figura humana na obra de Siron Franco não se configura como como simples efeito de uma estilística expressionista, tampouco como um exercício de dramatização subjetiva isolada. O que emerge é um processo de construção simbólica que age como dispositivo de captura e condensação de forças sociais, uma síntese plástica das tensões entre estrutura e experiência, entre história e afeto, entre a materialidade da exclusão e a imanência da dor. Seus personagens, com olhos que já não procuram o espectador – ou que, ao contrário, olham de dentro de uma opacidade sem fundo – habitam um limbo ontológico: uma zona de suspensão social onde o sujeito já não é apenas um indivíduo, mas um corpo coletivo, portador de uma memória histórica de precarização e despossessão. O que se revela é um estado de liminaridade, como diriam os antropólogos da transição ritual, mas, aqui, aplicado ao campo político-estético: corpos em trânsito entre o reconhecimento e a invisibilidade, entre a humanidade negada e a resistência silenciosa. Siron, como um operador estético dessa condição-limiar, transforma a figura humana em superfície de inscrição da luta por existência e dignidade de coletividades sistematicamente empurradas para as margens da vida social.
A estética do desamparo que atravessa a produção de Siron Franco atua como um campo intensificado de condensação ontológica, em que se tornam visíveis – ou melhor, perceptíveis em sua crueza – os efeitos mais corrosivos da desigualdade no Brasil. Aquilo que Siron certa vez denominou, ao refletir sobre sua prática artística, de “o olhar de quem está perdido” torna-se uma chave sensível e epistêmica para a criação de uma obra que capta e traduz visualmente processos históricos e sociais de despossessão – o desenraizamento, a exclusão sistemática e o deslocamento compulsório de sujeitos historicamente empurrados para as margens da existência. Não se trata de uma dor episódica, nem de uma psicologia individual em crise. Trata-se, antes, de uma inscrição corporal da violência – uma espécie de sintoma coletivo tornado visível na superfície pictórica. Em Siron, a dor é uma categoria histórica e ontológica, uma afecção que atravessa corpos como vetor de um processo contínuo de desestabilização do ser. A arte de Siron nos devolve a expressão de um regime de sofrimento socialmente produzido, enraizado nas assimetrias que estruturam o país como campo de disputas por reconhecimento, existência e dignidade.
Mais do que simplesmente relatar ou ilustrar eventos traumáticos, a obra de Siron Franco atua como uma máquina de produção de afetos dissonantes, um dispositivo ético-estético cuja função primeira é desestabilizar a posição de conforto epistemológico e perceptivo do espectador. A experiência estética se constitui como um campo de captura, um espaço onde o olhar é atravessado por uma demanda ética inadiável, distante de qualquer distanciamento contemplativo. Siron oferece situações de afecção que nos convocam a uma resposta. Sua obra tensiona, interrompe e implode a passividade da recepção estética tradicional, fazendo do espectador uma parte implicada no processo de construção de sentido. Trata-se de uma arte que, ao interrogar, exige ser interrogada de volta: um jogo de reflexividade assimétrica onde o espectador, ao olhar, é também olhado – e interpelado – por aquilo que vê.
Por outro lado, a inserção do universo onírico na produção de Siron Franco instaura um movimento duplo e simultâneo: ao mesmo tempo estético e epistemológico. O sonho não funciona como mero refúgio ou alienação. Antes, opera como um dispositivo de recomposição simbólica de uma realidade já exaurida por sua própria racionalidade. Em Siron, o onírico expande o real. Sua obra mobiliza uma forma de pensamento visual que rompe com a linearidade cartesiana e desafia os protocolos de inteligibilidade do realismo ocidental. Seu imaginário plástico atravessa as categorias estanques de tempo, espaço e sujeito, produzindo uma espécie de montagem narrativa multinatural, na qual regimes de existência distintos coexistem em um mesmo plano sensível. Siron constrói, assim, um saber visionário – um sistema cognitivo de origem estética que nos força a habitar a desordem. Ao embaralhar escalas temporais e geográficas, sua obra nos expõe a um campo de encontros e choques entre mundos que não foram feitos para caber dentro de uma única narrativa racional.
Há, nessa operação estética e cognitiva, um gesto claro de ruptura com a concepção ocidental de uma temporalidade histórica linear, contínua e cumulativa. O sonho, como forma de pensamento e categoria estética mobilizada por Siron Franco, atua como uma máquina de desestabilização do tempo homogêneo e vazio que estrutura a modernidade capitalista. Em lugar da cronologia disciplinada e progressiva, Siron faz emergir o que poderíamos chamar, numa aproximação com uma antropologia das temporalidades, de uma polifonia histórica das imagens: um campo de montagem onde passados, presentes e futuros coexistem em regime de simultaneidade conflitiva. Sua produção plástica expande os limites formais da linguagem artística e atua como crítica visual incisiva aos dispositivos modernos de racionalização, classificação e representação do real. O que Siron propõe é uma contra-história das imagens: uma temporalidade na qual o olhar não caminha em linha reta, mas circula entre diferentes regimes de historicidade, produzindo sentidos em permanente estado de desdobramento e reconfiguração. O que se delineia, no limite, é uma insurgência epistemológica que faz da imagem um território de guerra ontológica contra a tirania de uma única forma de tempo.
Se a dor e o sonho, na obra de Siron, constituem dispositivos de inscrição e desestabilização, é no território ambíguo da figura híbrida que sua poética alcança uma radicalização visual da crise: ali onde o humano se desfaz em seus próprios limites e dá lugar a uma nova máquina de visibilidade crítica.
Máquinas de dessubjetivação
Um dos traços mais recorrentes – e talvez mais emblemáticos – da produção de Siron Franco é a insistente aparição de figuras antropomórficas, que se apresentam menos como exercícios de imaginação formal e mais como dispositivos de mediação ontológica entre diferentes regimes de existência: a ordem natural e a história social da violência no Brasil. A hibridização entre homem e animal, tal como efetuada por Siron, não se reduz ao jogo plástico ou como alegoria de superfície. Antes, o que se evidencia é uma operação de desterritorialização, uma estratégia de desestabilização dos limites clássicos que separam humanidade e animalidade, civilização e barbárie, sujeito e objeto. Essas figuras não são “metáforas” de um humano degradado, mas, sim, manifestações de um regime de transformação no qual as fronteiras são instáveis, reversíveis e politicamente tensionadas. O animal, em Siron, é menos um outro absoluto e mais uma dobra interna do próprio humano. Suas imagens não ilustram a violência: elas a encarnam, a materializam num campo visual que obriga o espectador a reconhecer a animalidade constitutiva das relações sociais marcadas pela desigualdade, pela exclusão e pela violência histórica.
Ao mobilizar essas formas híbridas, Siron Franco realiza um movimento radical: a exposição de um processo contínuo de naturalização ontológica da violência, um regime de produção de diferença implementado pelas estruturas de poder que conformam (e deformam) o tecido social brasileiro. O que está em jogo, portanto, não é uma referência zoológica direta, como bem observa Joscelina Frazão (1998), mas da construção de um léxico visual capaz de materializar o abandono, a indiferença institucional e o desprezo pela vida humana como elementos constitutivos da experiência social no Brasil. Siron transforma a figura híbrida em um mecanismo de crítica, um dispositivo de desantropologização do humano, revelando a linha tênue – e historicamente manipulada – entre o que conta como vida digna de luto e o que é relegado ao estatuto de existência descartável. Suas imagens tensionam o espectador, colocando-o diante de uma ambiguidade em que a violência aparece como regra invisível de sustentação da ordem social.
Nesse movimento, o artista desloca o espectador de um lugar confortável de contemplação estética para uma zona de desconforto ético e ontológico. As figuras antropomórficas de Siron atuam como chaves de leitura para processos mais amplos de dessubjetivação, nos quais os limites entre o humano e o inumano deixam de ser categorias estáveis para se tornarem zonas de porosidade e transgressão. Manifesta-se, nesse contexto, uma construção visual que subverte a lógica representacional tradicional e denuncia o colapso de um projeto civilizatório que, ao mesmo tempo que se afirma como universal, se sustenta na produção cotidiana de corpos desumanizados, destituídos de direitos, de reconhecimento e até mesmo de status ontológico. Siron transforma a própria linguagem da arte em um dispositivo de desnaturalização crítica, expondo os mecanismos pelos quais a violência é incorporada, invisibilizada e normatizada dentro de uma ontologia política da exclusão. Suas imagens, mais do que representar, performam a crise: convocam o olhar para dentro de uma cena em que o espectador, ao tentar interpretar, se dá conta de que também faz parte da máquina de produção de inumanidade que a obra expõe.
Se nas figuras híbridas Siron desmonta as fronteiras do humano para revelar os dispositivos de exclusão inscritos na própria ontologia social brasileira, é na série Césio 137 que sua obra se transforma em campo de contágio sensível – não como denúncia ilustrativa, e, sim, como reencenação crítica de uma ferida coletiva ainda pulsante, onde a arte deixa de representar para se tornar acontecimento.
Arte como testemunho
A série Césio 137, concebida por Siron Franco nos desdobramentos imediatos daquele que foi o maior acidente radioativo em área urbana do Brasil, constitui-se em um marco singular em sua trajetória artística. Mais do que um simples gesto de denúncia episódica ou de resposta emocional imediata, a série inaugura um processo de elaboração simbólica de um trauma coletivo ainda em disputa no imaginário social, tanto goiano quanto nacional. Emerge aqui um gesto estético que vai além da representação: Siron ativa a arte como tecnologia de memória e de elaboração afetiva, um dispositivo de tradução de uma violência invisível, molecular, contaminante – uma violência que escapa aos regimes tradicionais de visibilidade e que, por isso mesmo, exige novas formas de inscrição sensível. A série Césio 137, ao romper com os parâmetros convencionais de recepção estética, institui uma espécie de campo de contágio simbólico, em que o espectador deixa de ser mero observador e passa a ser afetado, implicado e, de algum modo, exposto à continuidade do trauma como campo de disputa social e ontológica.
A utilização de materiais como a terra contaminada e as roupas das vítimas na série Césio 137 não pode ser reduzida a um mero recurso técnico, tampouco interpretada como simples efeito de choque sensorial. O que Siron Franco realiza é uma intervenção estética de alta voltagem: um tensionamento deliberado e radical das fronteiras entre o artístico e o político, o estético e o ético, o objeto e o acontecimento. Ao incorporar a própria matéria da catástrofe – a substância física do trauma –, Siron implode a autonomia tradicional da obra de arte, e instaura um regime de contágio simbólico e epistemológico. Sua prática desestabiliza a lógica moderna da separação entre representação e realidade, transformando a obra em uma extensão direta do acontecimento traumático no campo da memória social. Estamos diante de uma inscrição material da violência, um deslocamento epistemológico que transforma o objeto artístico em zona de afecção, onde o espectador é forçado a atravessar a distância entre olhar e acontecer. Siron, nesse gesto, convoca a arte a habitar um terreno instável, quando categorias clássicas de separação entre estética e política se tornam insuficientes para conter a potência transformadora do acontecimento.
O que a série Césio 137 realiza é uma recusa sistemática do esquecimento, uma contrapolítica da memória que opera como reatualização permanente de uma experiência-limite. Siron Franco transforma a obra em um dispositivo de resistência ao apagamento oficial, instaurando um regime de visibilidade que devolve à cena pública o que o Estado brasileiro – com suas fragilidades e sua lógica histórica de gestão seletiva da vida – preferiria manter no domínio do invisível. A obra performa a memória como campo de disputa política e ontológica, expondo as falhas constitutivas de um Estado incapaz de garantir a proteção de suas populações mais vulneráveis. A série tensiona, assim, as estruturas de poder que regulam a gestão de riscos ou a saúde pública, e também os próprios regimes de reconhecimento, afetação e luto. O que está em jogo é um gesto estético-político: uma insurgência visual contra os mecanismos de neutralização histórica, uma espécie de guerra entre a memória oficial e os resíduos tóxicos de uma experiência coletiva que insiste em não desaparecer.
A dimensão estética, longe de se dissolver diante da urgência política, adquire ainda mais densidade e complexidade na obra de Siron Franco. O artista mobiliza um regime de sensibilidade marcado por uma “estética da catástrofe”, nos termos de Eliézer Cardoso de Oliveira (2013). A obra instaura uma configuração perceptiva que captura o espectador em uma zona de ambivalência, onde fascínio plástico e repulsa ética se entrelaçam sem possibilidade de síntese pacificadora. Ela convoca o olhar a penetrar um campo de tensões irresolúveis – entre a sedução formal e a denúncia política, entre a contemplação estética e a responsabilização moral. O espectador é interpelado a habitar o desconforto. Siron transforma a experiência estética num verdadeiro operador cosmopolítico, onde a arte não representa a catástrofe, outrossim, a faz acontecer novamente – como uma espécie de ritual de reencenação crítica, um dispositivo de captura sensível que obriga o espectador a confrontar-se com a violência não como fato passado, mas como acontecimento ainda em curso (ver, entre outros, Santos (2026), Passos (1987), Menezes (2022), Gonçalves (2005), Frazão (1998), Couto e Rodrigues (2005).
Essa ambiguidade não é casual, tampouco um mero efeito retórico. Essa é uma ambiguidade constitutiva, que exprime – de forma quase exemplar – os dilemas de uma sociedade que oscila entre a espetacularização midiática da tragédia e a recusa sistemática de suas consequências sociais mais profundas. Na série Césio 137, Siron Franco nos entrega um dispositivo crítico, uma zona de memória insurgente onde o sofrimento coletivo é reativado como campo de disputa sensível e política. Como já mencionado, a obra não busca resolver, ilustrar ou representar o trauma: ela o mantém em estado de crise, desestabilizando as formas já estabilizadas de percepção, recepção e elaboração do sofrimento social. Siron instala uma espécie de curto-circuito entre ética, estética e política, o que obriga o espectador a habitar essa tensão sem a promessa de uma catarse redentora. O que emerge, no fim, é uma política visual da não indiferença, um campo de forças onde olhar, lembrar e responsabilizar-se tornam-se dimensões inseparáveis de uma mesma experiência estética e ontológica.
A potência que atravessa a série Césio 137 – ao transformar o trauma coletivo em campo de afecção crítica – encontra novo desdobramento no espaço urbano, onde a arte de Siron Franco deixa de atuar apenas na superfície da memória e passa a intervir diretamente nas disputas por existência e reconhecimento entre mundos em conflito.
Insurgências no espaço urbano
Dentre as intervenções públicas realizadas por Siron Franco, o Monumento às Nações Indígenas, inaugurado em 2002, na cidade de Aparecida de Goiânia, merece atenção especial pela densidade simbólica, política e ontológica que carrega. Longe de se reduzir a um mero objeto escultórico destinado à contemplação estética, o monumento funciona como um verdadeiro dispositivo de memória insurgente, um dispositivo de visibilidade que se inscreve no espaço urbano como contranarrativa material ao processo histórico e sistemático de invisibilização e apagamento dos povos originários no Brasil. Siron, ao ocupar o espaço público com essa intervenção, reintroduz corpos e histórias excluídas no imaginário coletivo, e instaura o que poderíamos chamar de um contramonumento: uma forma estética que não celebra a história oficial; diversamente, a contesta, a fere, a tensiona. Trata-se de uma inscrição material de uma ontologia da resistência, na qual o espaço, o corpo e a memória são articulados como campos de disputa simbólica e política. O monumento, nesse sentido, transforma o espaço em palco de conflito, em que diferentes regimes de historicidade e reconhecimento colidem de maneira irreversível.
Suas formas orgânicas, de forte apelo visual e sensorial, não se limitam a acionar um passado remoto, encapsulado na história oficial. Ao contrário, o Monumento às Nações Indígenas convoca o espectador a uma reflexão crítica sobre o presente contínuo do genocídio indígena, das expropriações territoriais e da negação sistemática de direitos culturais, territoriais e políticos. O tempo se constitui em regime de simultaneidade conflitiva: não há separação segura entre passado e presente, entre memória e atualidade. Siron desestabiliza a linearidade histórica e expõe a permanência da violência colonial como um fenômeno estrutural e reiterativo. Ao se posicionar em um espaço público, o monumento rompe com a falsa neutralidade da paisagem urbana e reinscreve, de forma contundente e inescapável, a presença indígena como agente histórico e político. Nesse gesto, instaura-se um movimento em que a própria matéria da cidade é obrigada a dar lugar ao que foi historicamente silenciado. O monumento ultrapassa a lógica representacional das populações indígenas: ele as faz aparecer, impõe sua presença, força o reconhecimento e converte o espaço urbano em campo de fricção entre regimes de invisibilidade e formas de existência que insistem em persistir.
O monumento, nesse sentido, ressignifica o espaço ao instaurar uma espécie de contramemória insurgente que desafia e subverte as narrativas hegemônicas de progresso, desenvolvimento e modernização que historicamente moldaram o imaginário urbano goiano. Siron, ao mobilizar os códigos formais e simbólicos da arte pública, articula uma crítica visual direta ao processo contínuo de apagamento cultural e territorial dos povos indígenas, denunciando a violência estrutural que sustenta o próprio desenho das cidades e a configuração dos espaços de memória. Sua obra faz da paisagem urbana um campo de disputa, um lugar onde diferentes regimes de historicidade e pertencimento colidem e se sobrepõem. O monumento deixa de ser mero marco cívico para tornar-se uma plataforma de conflito simbólico.
Além de sua dimensão estética, o Monumento às Nações Indígenas reativa modos de existência historicamente desautorizados, pois reinstaura no espaço urbano uma presença que foi sistematicamente apagada pelos dispositivos coloniais de poder. Sua inscrição no cotidiano da cidade se configura como como um lembrete material de que a história nacional permanece atravessada por conflitos não resolvidos, zonas de apagamento e violências normalizadas. Siron, ao tensionar o espaço público com essa intervenção, faz da arte um dispositivo de insurgência ontológica, em que diferentes regimes de existência e de historicidade colidem e se tornam visíveis. O monumento reposiciona o presente, produzindo uma abertura crítica no fluxo temporal da cidade, na qual a arte assume sua dimensão de intervenção ativa nos modos de constituição do real coletivo.
Se pensarmos assim, então, a destruição do Monumento às Nações Indígenas – golpeado com porretes, martelos e outros instrumentos de negação material – não pode ser compreendida como mero ato de vandalismo isolado ou irrupção episódica de intolerância. O que se manifesta nesse gesto é a atualização de um conflito que atravessa a história brasileira desde sua origem colonial: a recusa sistemática da coabitação de mundos. O ataque ao monumento é um esforço de reimposição de um único regime de realidade, um modo de existência que não tolera a presença insurgente de outras formas de vida e de memória que o monumento fazia materializar no espaço urbano. Mais do que a destruição de um objeto físico, o que se tenta aniquilar é a própria possibilidade de uma presença indígena que, ao se afirmar no espaço público, desestabiliza o pacto ontológico que sustenta o projeto civilizatório hegemônico.
O incômodo gerado pelos rituais e celebrações realizados por diferentes etnias no entorno do monumento revela o verdadeiro núcleo do conflito: o conflito em questão não gira em torno apenas do espaço, mas da afirmação de mundos em confronto. A cena de destruição é a expressão plástica de uma ontologia que nega a alteridade como condição de existência legítima. O ataque não mira apenas o monumento como forma; ele atinge um modo de existência em ato, uma presença indígena que se fazia visível, sonora e politicamente irredutível dentro da lógica da cidade moderna. Siron, ao instaurar esse campo de fricção, fez mais do que criar uma obra pública: instaurou um dispositivo de desestabilização ontológica, cujo efeito mais evidente foi justamente provocar a reação violenta daqueles que não aceitam a pluralidade de mundos como condição mínima de justiça histórica.
A violência dirigida contra o Monumento às Nações Indígenas, ao expor a recusa da coabitação entre mundos, revela com nitidez o alcance ontológico da obra de Siron Franco – um alcance que não se esgota na denúncia ou na representação, mas que exige, como conclusão, pensar sua estética como um dispositivo radical de fricção entre modos de existência.
Notas finais: a estética como dispositivo de conflito
Três décadas depois daquela visita silenciosa ao ateliê, retorno como alguém que ainda escuta os mundos que Siron faz emergir – não em busca de respostas, mas em confronto com as perguntas que sua arte insiste em lançar. Não se trata de um reencontro com a memória, mas de um novo começo: uma entrada renovada no campo de fricções no qual feridas se reabrem, territórios se deslocam e o pensamento é convocado a recomeçar. Esse retorno afetivo e crítico torna-se ponto de ignição para uma leitura que reconhece, na obra de Siron Franco, uma força estética e política em movimento contínuo.
Ao pensar nisso, neste artigo, busquei mapear os caminhos pelos quais sua obra tensiona fronteiras entre estética e política, recusando enquadramentos convencionais e ativando zonas de fricção entre mundos historicamente hierarquizados. Longe de ser apenas uma arte engajada ou um gesto isolado dentro do sistema das belas-artes, a produção de Siron Franco configura-se como uma estética do irreconciliável: uma máquina de produção de crise entre regimes de existência incompatíveis.
Seja pela materialização do trauma radioativo, pela visibilização da dor social ou pela afirmação de uma memória indígena insistentemente negada, sua arte não representa o conflito – ela o ativa, o amplifica e o reinscreve no campo sensível. Nesse processo, Siron se afirma como agente de mundos em confronto, expondo as fissuras da colonialidade do poder e desafiando qualquer noção de neutralidade na arte contemporânea.
Ao fim, o que sua obra oferece não é pacificação, e, sim, perturbação. Siron Franco nos propõe menos uma estética da representação e mais uma ontopolítica da crise: um convite – ou uma exigência – para habitar a tensão, a ambiguidade e o desconforto como formas legítimas de pensar, lembrar e existir no Brasil contemporâneo.
É dessa convocação ao incômodo – não como efeito, mas como princípio – que emerge a radicalidade de seu gesto plástico. Siron não pinta: desloca. Arranca o chão sob os pés do mundo, embaralha as linhas do tempo como quem revolve terra antiga, e ali, no abalo entre o que já foi e o que ainda ameaça ser, faz com que passado e porvir se encostem – sem descanso, sem trégua, sem tradução.
Pedro Paulo Gomes Pereira é professor Titular de Antropologia da Universidade Federal de São Paulo
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Fonte: https://revistacult.uol.com.br/home/topografias-da-ruina-e-da-insurgencia-siron-franco-e-estetica-do-irreconciliavel/