Falta de fiscalização deixa 241 barragens e milhares de pilhas de rejeitos em risco no Brasil

Barragens da Mina Mar Azul foram construídas no método a montante, o mesmo de Brumadinho e Mariana – Foto: Leo Fontes/O Tempo

O Brasil tem hoje 241 barragens com risco à segurança, segundo o novo Relatório de Segurança de Barragens (RSB) divulgado nesta terça-feira (1º) pela Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA), vinculada ao Ministério da Integração e do Desenvolvimento Regional. Essas estruturas foram classificadas como prioritárias na gestão de risco porque os responsáveis não cumpriram todos os requisitos previstos pela Política Nacional de Segurança de Barragens (PNSB).

De acordo com o relatório, “em caso de acidente com essas estruturas, há risco a pessoas ou a equipamentos importantes, que podem comprometer o fornecimento de serviços essenciais”. As barragens estão espalhadas por 24 estados — com exceção de Paraíba, Paraná e Roraima, onde não foi registrado nenhum caso prioritário.

Das 241 barragens listadas, 96 pertencem a empresas privadas, 39 a órgãos públicos, 10 são operadas por sociedades de economia mista e outras 94 sequer têm identificação de responsáveis. As principais finalidades dessas estruturas são a regularização de vazão (23,7%), disposição de rejeitos de mineração (21,2%), irrigação (16,6%) e abastecimento humano (12,9%).

Ao todo, o país possui cerca de 28 mil barragens cadastradas no Sistema Nacional de Segurança de Barragens. Dessas, 6.202 se enquadram nas exigências da PNSB, por apresentarem características como capacidade superior a 3 milhões de metros cúbicos, presença de resíduos perigosos ou risco de perdas humanas. No entanto, mais da metade das barragens (14.878) ainda não tiveram seu enquadramento definido, o que, segundo a ANA, dificulta a fiscalização. Outras 7.005 não se enquadram nos critérios da política nacional.

Em 2023, o Brasil registrou 24 acidentes e 45 incidentes com barragens, com dois óbitos e prejuízos diversos, como rompimento de pontes, destruição de casas, interdição de estradas e danos ambientais. Os principais causadores desses eventos foram as chuvas extremas: dos 24 acidentes, 16 estiveram ligados a cheias. O relatório aponta que o Rio Grande do Sul, afetado por enchentes históricas em 2024, foi palco de 21 incidentes e 3 acidentes com barragens.

Mesmo com o cenário de risco crescente, o número de fiscalizações de campo caiu 7% em relação ao ano anterior, totalizando 2.859 visitas. Foram também realizadas 3.162 fiscalizações documentais. A ANA atribui parte dessa queda à falta de profissionais dedicados: dos 356 servidores atuando na fiscalização em todo o país, apenas 169 têm dedicação exclusiva à segurança de barragens. Em 85% dos órgãos fiscalizadores, as equipes estão abaixo do recomendado.

O relatório também denuncia a ausência de um orçamento específico para segurança de barragens. Em 2024, o valor previsto foi de R$ 272 milhões, mas apenas R$ 141 milhões foram efetivamente pagos, sendo a maior parte dos recursos oriunda dos estados. A ANA destaca que ainda não há um sistema que detalhe quanto do orçamento foi destinado para ações essenciais como fiscalização, planos de segurança e capacitações técnicas.

SEM REGULAÇÃO, PILHAS DE REJEITOS SE ESPALHAM

Além das barragens, cresce a preocupação com as pilhas de rejeitos utilizadas pela mineração como alternativa às estruturas do tipo montante, proibidas após os desastres de Mariana e Brumadinho. Apesar de serem consideradas menos perigosas, essas pilhas ainda não possuem regulamentação federal nem protocolos claros de fiscalização.

A confeiteira Lexandra Machado presenciou uma dessas ocorrências em dezembro de 2024, no povoado de Casquilho de Cima, em Conceição do Pará (MG). “Fiquei tão atordoada, que comecei a gritar. Logo me lembrei de Brumadinho. Após uns 40 minutos, os funcionários da empresa passaram de carro, dizendo que era para sairmos de casa”, relatou. O deslizamento da pilha, com 80 metros de altura, atingiu sete casas. Quatro meses depois, nenhum morador havia retornado ao local.

Segundo o engenheiro Júlio Grillo, ex-superintendente do Ibama em Minas Gerais, “a pilha rompeu em Conceição do Pará, porque a base não foi preparada adequadamente para aguentar o peso”. Ele alerta para a gravidade do cenário atual: “Isso faz com que a probabilidade de rompimento de uma pilha, hoje, seja maior do que a de uma barragem, que já tem regulamentações e critérios de licenciamento mais rigorosos”.

De acordo com especialistas, algumas pilhas licenciadas ou em processo de licenciamento no Brasil poderão ultrapassar 200 metros de altura. Ainda que o material seco se acomode mais facilmente, o risco estrutural continua preocupante. Segundo Grillo, “a falta de fiscalização e de transparência quanto aos cálculos que definem as dimensões das pilhas preocupam”.

A pilha que desabou em Conceição do Pará tinha o dobro da altura do Cristo Redentor e ocupava uma área próxima à do estádio do Maracanã. Segundo a última atualização da empresa Jaguar Mining à ANM, o volume movimentado no desabamento foi de 640 milhões de litros. Questionada sobre os parâmetros autorizados para a estrutura, a empresa alegou que a pilha “não tinha atingido sua altura e volume máximos e operava de acordo com licenciamento junto aos órgãos reguladores”.

A Secretaria de Meio Ambiente de Minas Gerais (Semad) afirmou que “os aspectos geotécnicos das pilhas extrapolam o escopo do licenciamento ambiental” e que a responsabilidade técnica é da Agência Nacional de Mineração (ANM). Já a ANM declarou que “a licença de operação é de responsabilidade do órgão ambiental” e que a pilha foi vistoriada nove vezes desde 2009, com autuações e interdições parciais, sendo a última vistoria em 2021.

Apesar disso, a ANM reconhece que não existe cronograma específico de vistorias para pilhas nem “uma equipe dedicada exclusivamente para essa fiscalização”. Também não há “um cadastro que permita rastrear a quantidade de vistorias específicas de pilhas”, que acabam sendo inspecionadas de forma esporádica e sem acompanhamento sistemático.

Enquanto a Lei 12.334 de 2010 criou a Política Nacional de Segurança de Barragens, nenhuma legislação específica trata das pilhas de rejeito. Informações técnicas sobre essas estruturas também não estão disponíveis em bancos públicos, ao contrário do que ocorre com as barragens.

Segundo relatório anual do setor, há no país mais de 3 mil pilhas de rejeitos, estéril ou mistas. Dentre elas, 232 são exclusivamente de rejeitos — 41 associadas à mineração de ferro e ouro, as mais críticas em termos de toxicidade, por envolver substâncias como arsênio, cianeto e mercúrio.

Para o procurador do Ministério Público Federal em Minas Gerais, Carlos Bruno Ferreira, “a partir do momento que o minerador não tem obrigações para cumprir, que pode deixar a pilha sem equipamentos que verifiquem a solidez da estrutura, sem o equipamento de vídeo e sem uma equipe de segurança, como eu verifiquei no caso da Jaguar Mining, se torna mais simples colocar os rejeitos em forma de pilha”.

O setor de mineração alega seguir o Padrão Global da Indústria para Gerenciamento de Rejeitos, que inclui o empilhamento a seco. O diretor de assuntos minerários do Instituto Brasileiro de Mineração (Ibram), Júlio Nery, afirma que as normas técnicas do setor existem desde os anos 1990 e são “periodicamente revisadas”. No entanto, ele reconhece que elas funcionam como recomendações internas e não têm força de lei.

Segundo Nery, “as dimensões das pilhas podem variar em função da topografia, dos locais de disposição, da geologia local e da localização geográfica”. Ainda assim, o projeto deve conter plano de monitoramento, estudo de risco e plano de ação em caso de emergência — exigências que, na prática, continuam sem fiscalização nem padronização obrigatória.

O fato é que, hoje, o Brasil tem mais pilhas do que barragens e nenhuma política nacional que as regulamente. Enquanto isso, moradores seguem expostos a estruturas instáveis, fiscalizações esporádicas e licenças renovadas automaticamente, mesmo diante de alertas recorrentes da ciência e de órgãos públicos.

Fonte: https://horadopovo.com.br/falta-de-fiscalizacao-deixa-241-barragens-e-milhares-de-pilhas-de-rejeitos-em-risco-no-brasil/