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Entre 2021 e 2023, mais de 50 mil crianças foram registradas por casais homoafetivos no Brasil. Nesse mesmo período, o número de crianças que encontraram um lar dobrou, graças à adoção realizada por casais do mesmo sexo. Desde a legalização do casamento homoafetivo em 2013, o País tem registrado um aumento contínuo dessas uniões, refletindo a crescente diversidade na configuração das famílias brasileiras. Essa transformação no perfil das famílias também impacta diretamente em vários setores, incluindo o Turismo.
De acordo com projeções da Research and Markets, o mercado global de Turismo LGBTQ+ deve movimentar US$ 532 bilhões até 2030, com uma taxa de crescimento anual de 6,9%. Além disso, estudos apontam que o Turismo LGBTQ+ é, em média, 30% mais rentável do que o Turismo convencional.
A presença cada vez maior de famílias LGBTQ+ no setor turístico tem contribuído para ampliar a diversidade de ofertas e destinos voltados a esse público. O segmento familiar ganha destaque e quebra estereótipos ao mostrar que o Turismo LGBTQ+ vai muito além de vida noturna e grandes festas. Hoje, casais homoafetivos com filhos procuram experiências culturais, roteiros personalizados e estruturas que acolham suas famílias. Especialistas frisam esse novo cenário, destacando como a evolução social tem impulsionado esse perfil de viajantes e influenciado diretamente o mercado.
Ed Salvato, professor de Turismo na Universidade de Nova York e integrante da Proud Experiences, expõe que, no último ano, cerca de 85% dos pais LGBTQ+ com filhos menores de 18 anos fizeram pelo menos uma viagem em família, o que impulsiona o setor de Turismo a desenvolver produtos e serviços mais inclusivos para atender às necessidades específicas desse público.
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“O mercado global de Turismo LGBTQ+ é uma força econômica poderosa. Estima-se que seu impacto econômico global anual seja superior a US$ 140 bilhões. Esse efeito ressalta o poder de compra substancial dos viajantes LGBTQ+, incluindo famílias. Destinos que promovem ativamente a inclusão e a segurança para famílias LGBTQ+ frequentemente registram aumento na receita. Temos exemplos de destinos como Cidade do Cabo, na África do Sul, e Barcelona, na Espanha, que registraram um crescimento econômico influenciado pela presença de famílias LGBTQ+. Isso não apenas enriquece o tecido cultural dos destinos, mas também proporciona benefícios econômicos tangíveis. Ao promover ambientes inclusivos, os destinos podem atrair uma gama diversificada de viajantes, levando ao crescimento econômico sustentado e ao desenvolvimento da própria comunidade local”, esclarece Ed.
Além do impacto econômico, o comportamento desse novo perfil de viajantes também revela mudanças im portantes nos critérios de escolha dos destinos. Uma pesquisa da Booking.com revelou que:
- 34% dos pais LGBTQ+ brasileiros afirmam que sua orientação sexual ou identidade de gênero influencia na escolha dos destinos de férias com a família;
- 67% também analisam se o local é acolhedor tanto para crianças quanto para pessoas LGBTQ+ antes de realizar suas reservas.
Robert e Gustavo, digital influencers conhecidos como @2depais e pais do Marc e da Maya, contam que adoram viajar com as crianças e que sempre fazem questão de escolher destinos que sejam abertos a famílias LGBTQ+.
“Quando viajamos em família, buscamos destinos que oferecem acessibilidade, estrutura e opções de lazer para os pequenos. Preferimos destinos que concentram tudo em um só lugar — como resorts ou cidades super preparadas para famílias, como Orlando. A França também nos surpreendeu positivamente, além do Brasil, que é um país incrível para viajar sendo uma família LGBTQ+. Em todas as cidades que visitamos com as crianças, fomos muito bem recebidos. E o mais bonito é que não se trata de um tratamento diferenciado — somos tratados simplesmente como uma família, como qualquer outra. Isso, para nós, é o mais importante”, destacam.
Acervo pessoal
Outro casal que compartilha essa visão é o @paisde3_, Carlos e Lucas, pais do Kawã, do Edgar e da Ketlin, que também valorizam destinos acolhedores. Eles relatam ótimas experiências ao viajar pelo Brasil, especialmente no Marupiara Resort, em Porto de Galinhas (PE), onde se sentiram acolhidos tanto pelos colaboradores do hotel quanto pelos demais hóspedes.
“Foi um lugar que nos deixou muito à vontade para aproveitarmos todos os momentos. Inclusive, lá, também tivemos contato com outras famílias LGBTQ+ hospedadas. Antes de fazer qualquer viagem, a gente sempre pesquisa sobre o lugar e o acolhimento à diversidade. Então, vamos nas redes sociais verificar se há diversidade nas publicações, além de também pesquisarmos a cultura local. Por meio das viagens, nossos filhos têm contato com outros costumes e culturas, fazendo com que eles também se identifiquem e aprendam mais sobre a diversidade que existe além da nossa família, respeitando outras formas de ser e existir. Além disso, também traz segurança a eles próprios, pois percebem que a família deles é ‘diferente’ para outras pessoas, mas que a beleza está realmente aí: nas diferenças existentes. Viajar é uma forma de mostrar toda essa riqueza que existe, fortalecendo todos nós em relação à diversidade e à identidade familiar”, compartilham.
Acervo pessoal
Tony Warner, vice-presidente de Finanças da IGLTA, explica que as viagens multigeracionais — que reúnem crianças, avós e outros parentes — estão se tornando cada vez mais comuns e duradouras, com a segurança sendo sempre a prioridade. Ele próprio, ao lado do marido, realiza frequentemente viagens internacionais de longa duração com os três filhos do casal, de nove anos.
“Levamos nossos filhos ao Sri Lanka, às Maldivas, à África do Sul e à Namíbia. Viajar abre os olhos deles, aumenta a confiança e os ajuda a entender a diversidade cultural. A segurança é a base das nossas viagens. Se não sentirmos que nossa família estará segura e respeitada, não iremos. Famílias LGBTQ+ planejam com cuidado, gastam com cuidado e se lembram de como são tratadas.”
Warner reforça que hotéis e destinos devem se destacar de forma significativa, capacitando equipes para o uso de linguagem inclusiva, adotando posturas acolhedoras e oferecendo estruturas e atividades voltadas para todos os tipos de família. “Quanto mais visíveis formos, mais chances teremos de abrir corações e mentes”, conclui.
Acervo pessoal
Crianças em eventos LGBTQ+ ?
Eventos e festivais desempenham um papel fundamental não apenas para o Turismo LGBTQ+, mas para o setor como um todo. Seu enorme potencial econômico é evidenciado por iniciativas como as Paradas do Orgulho, especialmente a de São Paulo, que figura entre as maiores do mundo. A cada edição, o evento atrai entre 3 e 4 milhões de pessoas e movimenta mais de R$ 400 milhões, impulsionando a economia local e beneficiando diretamente hotéis, restaurantes, bares, serviços de transporte e o comércio em geral.
Além das Paradas do Orgulho, a comunidade LGBTQ+ também reforça sua diversidade em eventos culturais e artísticos como shows de drag queens – que combinam performance, música, moda e até humor e teatro – exposições de arte em museus, mostras de cinema, circuitos literários e manifestações políticas.
Para Bruna e Camila, mais conhecidas como @2maeseosgemeos, participar de eventos como esses é uma forma de aproximar os filhos da representatividade e da diversidade.
“Levamos nossos filhos em eventos LGBTQ+ porque acreditamos que é muito importante que eles vejam que a nossa família é tão legítima quanto qualquer outra. Cada viagem, cada experiência, acrescenta positivamente na vivência deles”, comentam.
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Robert e Gustavo pensam da mesma forma e se orgulham em afirmar que levam Marc e Maya a eventos LGBTQ+ desde bebês. “Participamos da Parada do Orgulho todos os anos. Sempre vamos no momento da montagem, antes da grande movimentação, para que eles possam ver como aquela festa é construída — com orgulho, alegria e respeito. Também gostamos de levá-los a eventos diurnos que celebram a cultura LGBTQ+, com shows de drag, arte e representatividade. Fazemos questão de mostrar esse universo para eles desde pequenos, com naturalidade e carinho”, afirmam.
O LGBT+ Turismo Expo é outro exemplo de evento que dispõe de espaços para famílias. Marcada para o dia 24 de julho, em São Paulo, a feira reunirá fornecedores de produtos e serviços que atendem as demandas dos viajantes LGBTQ+, além de apresentar treinamentos e painéis sobre destinos acolhedores.
Alex Bernardes, idealizador do evento, compartilha que “cruzeiros exclusivos para famílias LGBTQ+ já são uma realidade em destinos internacionais. Em eventos como a Parada do Orgulho de São Paulo, destaca-se a iniciativa do Trio das Mães pela Diversidade. E também temos o Hopi Pride, no parque Hopi Hari, mais voltado a um público jovem. A oferta de opções específicas para famílias é limitada, apontando uma clara oportunidade de negócio para quem organiza eventos e festivais LGBTQ+ ao passar a contemplar esse público.”
Famílias que só querem… ser famílias
Como se não bastassem todos os anos de luta para garantir direitos básicos como a legalização da união estável e a possibilidade de formar uma família, casais LGBTQ+ ainda enfrentam julgamentos e discriminações em destinos e meios de hospedagem que não estão preparados para recebê-los de forma adequada. Comentários inadequados, suposições heteronormativas, ausência de políticas claras de não discriminação, materiais de marketing que retratam apenas casais heterossexuais e até a resistência em oferecer camas de casal para casais do mesmo sexo são exemplos de um despreparo que compromete a experiência dessas famílias.
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Robert e Gustavo, do @2depais, vivenciaram esse tipo de situação. “Como família, nunca passamos por situações desconfortáveis. Mas como casal, já vivemos um episódio constrangedor em Gramado (RS). Eu, Gustavo, preparei uma surpresa romântica para o Robert no hotel — com flores, pétalas, champanhe — mas na hora do check-in, a recepcionista simplesmente não conseguia entender que era para um casal gay. Ficou perguntando várias vezes se tínhamos certeza de que o quarto decorado era para a gente, nos acompanhou até lá, questionando o tempo todo e, sem querer, acabou estragando a surpresa. Não foi um caso de homofobia, mas de despreparo mesmo — faltou sensibilidade para lidar com a situação com naturalidade e enxergar a gente como um casal. Isso só reforça a importância de treinar equipes para lidar com a diversidade”, explica Gustavo, que ainda reforça a importância das empresas de Turismo oferecerem treinamento adequado aos colaboradores e parceiros. “Cabe às empresas garantirem que toda a cadeia — desde guias e funcionários até hotéis e restaurantes — esteja preparada para receber todos com respeito e naturalidade”, complementa.
Quem também enfrentou um momento desconfortável durante uma viagem foram Paula e Camila, conhecidas nas redes como @duasmaesdobenjamin. Ao chegarem ao hotel, se depararam com duas camas de solteiro, embora tivessem reservado uma cama de casal.
“Por sermos duas mulheres, presumiram que éramos apenas amigas. Outro problema recorrente são os formulários que exigem o preenchimento com ‘nome da mãe’ e ‘nome do pai’, como se todas as famílias seguissem o modelo heteronormativo. Sempre ressaltamos a importância de atualizar esses sistemas para ‘filiação’ ou ‘responsáveis’, tornando os formulários mais inclusivos e igualitários”, relatam.
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Ed Salvato salienta que empresas que negligenciam ou abordam de forma superficial a inclusão da comunidade LGBTQ+ comprometem não apenas sua imagem institucional, mas também seu desempenho financeiro. A ausência de um posicionamento consistente pode resultar na perda de credibilidade, relevância de mercado e receita, especialmente em um cenário onde os consumidores demonstram crescente consciência em relação aos valores das marcas que apoiam.
“Marcas que apoiam a comunidade LGBTQ+ de forma autêntica e consistente podem promover uma fidelidade significativa do cliente e impulsionar a lucratividade. De acordo com uma pesquisa da Nielsen, 72% dos consumidores LGBTQ+ deixam de comprar de marcas que não valorizam sua comunidade. Isso ressalta a importância do engajamento genuíno durante todo o ano, em vez de gestos limitados e performáticos durante o mês do Orgulho. A inclusão autêntica envolve mais do que apenas marketing; abrange políticas inclusivas, representação e ativismo”, elucida.
Nesse contexto, o setor de hospitalidade também tem buscado se adaptar. O Pullman São Paulo Ibirapuera, por exemplo, implementou mudanças para acolher melhor os novos perfis de viajantes, como:
- Treinamento de colaboradores focado em Diversidade, Equidade e Inclusão;
- Atendimento personalizado para clientes LGBTQ+, com fotos da família, itens com cores da bandeira do Orgulho e kit de desenho para crianças;
- Equipe de Guest Relations, que sugere roteiros personalizados pela região do hotel, de acordo com o que o hóspede solicita.
Juliana Silveira, coordenadora de Talento e Cultura do Pullman Ibirapuera, conta que “o treinamento da equipe é baseado em casos reais de situações discriminatórias vivenciadas por nossos próprios colaboradores. Orientamos o time sobre as atitudes adequadas a serem adotadas nesses contextos, com o objetivo de criar um ambiente seguro e acolhedor, onde todos se sintam livres para ser quem realmente são”.
Outro meio de hospedagem que se compromete com a diversidade a partir de políticas de inclusão e capacitação é a Blue Tree Hotels. Como parte desse compromisso, alguns hotéis da rede, entre eles o Blue Tree Towers Anália Franco (SP), ostentam o selo “Travel Proud” da Booking.com — uma certificação que reconhece a preparação de seus colaboradores para receber o público LGBTQ+ com respeito, igualdade e naturalidade.
Chieko Aoki, presidente da rede, explica que as equipes de atendimento passam por treinamentos específicos com foco em práticas inclusivas e no combate a preconceitos. “Todos os colaboradores da rede são capacitados continuamente em políticas de ética e diversidade, reforçando o compromisso com um ambiente acolhedor e respeitoso para todos os perfis de famílias. Esses treinamentos abrangem temas como comunicação não discriminatória, valorização das diferenças e atuação sensível em situações que exigem empatia, assegurando que todas as pessoas se sintam bem-vindas”, conta.
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Manual de boas práticas para receber famílias LGBTQ+
Utilize linguagem inclusiva – Evite suposições sobre gênero ou estrutura familiar;
Trate casais LGBTQ+ com igualdade – Ofereça o mesmo nível de atenção e serviços que seriam proporcionados a casais heterossexuais;
Capacite os colaboradores – Promova treinamentos regulares sobre diversidade, equidade e inclusão para toda a equipe;
Saiba lidar com situações de discriminação – Caso presencie ou seja informado sobre atitudes discriminatórias, esteja pronto para oferecer suporte às vítimas;
Adapte formulários e sistemas – Crie formulários com opções de gênero além de “masculino” e “feminino” e campos com “responsável 1” e “responsável 2” ao invés de “pai” e “mãe”;
Esteja atento a detalhes – Tenha a preocupação de adaptar o quarto em relação a artigos de uso pessoal e brindes para casais do mesmo sexo;
Demonstre compromisso com a inclusão – Ações como exibir a bandeira do arco-íris ou participar de eventos de orgulho LGBTQ+ são simbólicas, mas devem ser acompanhadas de políticas e práticas inclusivas reais. Além dos meios de hospedagem estarem preparados para receber essas famílias, os agentes de viagens também desempenham um papel fundamental na criação de experiências respeitosas para famílias LGBTQ+. Mais do que apenas intermediar reservas, esses profissionais têm a responsabilidade de garantir que todos os detalhes da viagem reflitam cuidado, inclusão e sensibilidade às diversas configurações familiares.
“Pergunte com atenção o que a família busca nas férias. Como consultor de viagens, você deve entrar em contato com o hotel e garantir que a roupa de cama seja a solicitada, para que o hóspede não precise fazer isso ou passar por qualquer situação constrangedora ao chegar”, orienta Gregg Kaminsky, fundador da R Family Vacations, operadora especializada em viagens LGBTQ+.
Dicas práticas para agentes e consultores de viagens
- Pratique o respeito à diversidade – Trate todos com igual consideração e prefira termos neutros como “seu/sua acompanhante”;
- Informe-se sobre destinos LGBTQ+ friendly – Saiba quais países têm leis discriminatórias e mantenha-se atualizado sobre destinos seguros;
- Recomende acomodações inclusivas – Dê preferência a hotéis e pousadas que sejam reconhecidamente LGBTQ+ friendly;
- Respeite nomes sociais e pronomes, especialmente com pessoas trans e não binárias;
- Ofereça serviços personalizados – Sugira experiências culturais, eventos ou locais LGBTQ+ friendly;
- Oriente sobre segurança – Dê dicas sobre como agir em situações de discriminação;
- Faça parcerias com empresas inclusivas – Trabalhe com fornecedores que respeitem os direitos da comunidade.
Essa matéria é parte integrante da Edição Especial LGBTravel da Revista PANROTAS:
Fonte: https://www.panrotas.com.br/mercado/diversidade/2025/07/familias-lgbtq-estao-prontas-para-viajar-mas-ainda-enfrentam-desafios_219138.html