O urbanismo higienista de São Paulo contra o Teatro de Contêiner

 

A poucos metros da Estação da Luz, no centro de São Paulo, funciona desde 2017 o Teatro de Contêiner, um equipamento cultural mantido pela Cia. Mungunzá. Além de peças teatrais, shows e encontros que ocorrem no interior dos compartimentos de carga que integram a arquitetura do prédio e que dão nome ao local, o espaço ainda abriga iniciativas sociais, como o ateliê têxtil do coletivo Tem Sentimento, que busca capacitar mulheres cis e trans em situação de vulnerabilidade através de oficinas de costura.

Quem caminha pelas instalações da praça-teatro ao redor dos contêineres, no entanto, não imagina que o terreno era um das 907 propriedades sem função social da cidade de São Paulo notificadas em 2016 pelo Departamento de Controle da Função Social da Propriedade da Prefeitura.

Segundo Marcos Felipe, ator, produtor e fundador da Cia. Mungunzá, o terreno do número 43 da rua dos Gusmões era um espaço abandonado pela prefeitura, ocupado irregularmente por um estacionamento até 2016, quando a companhia conseguiu uma permissão de uso temporário para promover um festival no local. “A Cia. Mungunzá surgiu em 2008 com a intenção de pensar uma produção cultural não apenas para a sociedade, mas com ela. Após algum tempo, passamos a nos questionar sobre a necessidade de um local próprio. Com nossos recursos, resolvemos construir o centro cultural”, diz.

Além de ter sido contemplado com um prêmio especial concedido pela Associação Paulista de Críticos de Arte de 2017, em razão do projeto de ocupação do terreno abandonado, o teatro, segundo Marcos, já habita a memória artística da cidade de São Paulo. Ao longo de nove anos, o local promoveu mais de 4.000 atividades culturais, sendo 83% delas gratuitas e algumas incentivadas pela prefeitura através do PIA (Programa de Iniciação Artística) e do Programa Vocacional.

A história do Teatro de Contêiner, no entanto, começou a mudar com a nova política da prefeitura da capital para a região conhecida como Cracolândia, cujo principal ponto de concentração está localizado a poucos metros dali, na esquina da rua dos Protestantes com a General Couto de Magalhães. “No início do ano, fomos chamados para uma reunião com o secretário [executivo de projetos estratégicos] Edsom Ortega para tratar do ‘fluxo’ ao lado da rua do teatro. Ele nos comunicou que teríamos que sair do local. Desde então tentamos marcar várias reuniões, que foram todas canceladas”, ele relata.

A situação se agravou na quarta-feira, 28, quando os membros da companhia receberam uma notificação extrajudicial da prefeitura para deixar o terreno em um prazo de quinze dias, que se encerra na próxima quinta-feira, dia 12. Segundo Marcos, o que a administração municipal alega é a intenção de reaver o terreno para a construção de moradia popular.

Para Marcos, que diz ter recebido o comunicado com um sentimento muito grande de injustiça, “não faz sentido nenhum desativar um equipamento cultural importante para a cidade sem diálogo. Andando pela cidade você percebe muitos prédios ociosos — muitos, inclusive, desapropriados — que poderiam ser utilizados para fins de moradia popular. É um ataque contra qualquer tipo de bom senso”.

Ele ainda conta que a prefeitura entrou em contato somente após a decisão da companhia de tornar público o pedido de despejo através de seu perfil no Instagram, o que resultou em uma carta de apoio já assinada por mais de 60 companhias teatrais paulistas e em manifestações favoráveis ao grupo por parte do Instituto Polis e do Instituto de Arquitetos do Brasil.

A resposta da prefeitura foi o agendamento de uma reunião com representantes da Cia. Mungunzá. Os membros do coletivo foram notificados com três horas de antecedência. Marcos afirma que nenhum membro da companhia compareceu à reunião como uma forma de demonstração política. “Essa foi mais uma das constantes violências que temos sofrido. Por isso, negamos a reunião”, diz ele.

Ele lembra casos de destruição de espaços de encenação na capital paulista, como o Teatro Vento Forte, demolido pela Prefeitura de São Paulo no começo deste ano sem a autorização do Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico (Condephaat) e o teatro da Aliança Francesa, que fechou as portas no final de 2023 para dar lugar a um empreendimento imobiliário.

“Quem governa São Paulo hoje não está interessado em teatro”, ele diz. “O entendimento de sociedade dos governantes desta cidade se resume a shopping, a teatro de shopping e à plastificação do convívio humano. Os teatros e cinemas de rua, que propõem uma outra lógica de cidade, e que fazem de São Paulo a capital nacional da cultura, não são vistos como algo benéfico.”

Observando ainda outras ações da prefeitura que impactaram o entorno do teatro nas últimas semanas, como a remoção da Favela do Moinho e a dispersão da cracolândia da rua dos Protestantes, Marcos classifica a política urbanística do município como “higienista”: “é uma política que visa afastar a população vulnerável para as bordas da cidade para que aqui tenhamos o que se entende como o belo burguês”, conclui.

 

Fonte: https://revistacult.uol.com.br/home/o-urbanismo-higienista-de-sao-paulo-contra-o-teatro-de-conteiner/