“Crianças pequenas, pequenos problemas, crianças grandes, grandes problemas”. Esse ditado, repetido por minha avó paterna em Iídishe, vem bem a calhar no contexto da onda reborn que vivemos.
Pai de adolescentes e de um pós-adolescente recente, creio que a invenção efetivamente redentora da parentalidade seria a do adolescente reborn, não a do bebê reborn.
Bebês dão trabalho, claro. Mas principalmente trabalho braçal. Se tem boa saúde, nossa preocupação é se mamaram bem, dormiram bem, e se fizeram bastante cocô. Atrapalham nossas noites de sono, porém em geral por curto tempo, o suficiente para se alimentar e capotar novamente. Na maior parte do tempo, são fofos, gostosos de segurar e de apertar, os achamos lindos e maravilhosos e na sua presença sonhamos com um mundo melhor, que eles construirão com sua inteligência ímpar – como nossos bebês são superdotados, não? Aprendem tudo tão rápido! – e com a sua sensibilidade inigualável. Freud tinha total razão ao dizer que projetamos nos bebês os ideais que não cumprimos, reparando, assim, nossas feridas narcísicas.
Já os adolescentes… aí o bicho pega. A impressão que se tem, na maior parte dos casos, é que desaprenderam tudo o que acreditávamos ter ensinado. Roupas no chão, banheiros e louças sujas, palavrões onipresentes, mau humor soberano, impaciência e intolerância com nossa humana imperfeição e com nossa ignorância virtual, desinteresse por quase tudo que se refere à nossa vida; na mão, o celular reiterando a certeza da nossa incompetência e do nosso fracasso existencial, em comparação com os influencers, atletas e astros pop-musicais do momento. Para eles, ainda que possam nos amar, e muito, somos um tanto chatos, nossas piadas não têm graça, nossas histórias eles já ouviram e nossos beijos causam uma mal disfarçada ojeriza. Podemos jogar as mãos para os céus se eles não se envergonham, perante os amigos, dos pais que tem.
Não dormimos, e justo nos finais de semana, esperando eles voltarem dos rolês. Não dormimos durante a semana, preocupados com o pouco interesse deles com os estudos. Não dormimos durante a semana e nos finais de semana, preocupados com quem andam, se fumam vape, ou cigarro, se e que drogas provaram, o que estão fazendo com seus corpos e sua sexualidade. Não dormimos pensando se devemos falar ou não certas coisas, pensando se e quando essa fase vai passar, se estão deprimidos ou se escondem escarificações. Não dormimos temendo que flertem com o crime, que a polícia vai matá-los, ou que eles vão se matar. Não dormimos com medo da nossa filha ser abusada sexualmente. Não dormimos pensando se poderemos pagar a faculdade.
Sobretudo, não dormimos culpados com o mundo que deixamos para eles… verdade difícil de encarar.
A série adolescência explicitou o mistério que cerca esse universo que um dia pretendeu representar a passagem da infância para a vida adulta. Na atualidade, onde quase nada é digno de confiança, principalmente os adultos, a adolescência pode ser tornar o sítio da máxima solidão, e do desespero.
O pediatra e psicanalista britânico Donald Winnicott escreveu que o adolescente trava uma necessária luta com o universo cultural dos adultos. Só assim ele poderá ter a experiência de que viverá em mundo para o qual contribuiu criativamente, e não em um que lhe foi imposto e ao qual deverá, submisso, se adaptar. Exercitar essa luta é, portanto, o antídoto para o conformismo, ou para seu avesso, a delinquência, bem como para o desinteresse generalizado e a depressão. Porém, a condição de possibilidade para que a luta do adolescente se dê é a postura firme e coerente dos adultos que se responsabilizam por ele, sejam os pais e demais familiares, sejam os educadores e os que se encarregam da sua formação humana. Dá trabalho, muito trabalho. O adolescente porta em seu olhar o espelho que exige que nós, adultos, possamos nos indagar acerca do exemplo que estamos dando e dos valores que estamos transmitindo.
Uma opção menos custosa seria a adoção de um adolescente reborn, no lugar de um adolescente de carne, osso, pelos, muitos pelos, e alma. Quem não quiser assumir o embate que caracteriza a educação e o acompanhamento de um adolescente, e a autocrítica permanente que os adolescentes demasiado vivos nos exigem, poderia passear com seu adolescente reborn no shopping sem gastar muito, levá-lo para visitar os avós e outros familiares sem ter que ouvir reclamações, fazê-lo frequentar cultos religiosos de boa fé, escolher que série assistir e o que comer sem discussão, manter banheiros limpos e dormir tranquilo sete por sete.
Seria, também, o fim de todo e qualquer questionamento acerca do nosso estilo de vida. Mas este questionamento, ao que parece, já foi abduzido pelo trabalho e consumo compulsivos e pelo espelho reluzente das bolhas virtuais nas quais habitamos.
Daniel Kupermann é psicanalista e professor do Instituto de Psicologia da USP.
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Fonte: https://revistacult.uol.com.br/home/adolescente-reborn/