Caso André – Revista Cult

 

Foi num domingo de manhã. A igreja vibrava em vozes e cânticos, o som alto preenchendo cada canto do espaço. No púlpito, o pai de André proferia com a firmeza de quem domina o sermão decorado, repetindo palavras que pesavam como pedras: a homossexualidade, um pecado que ameaçava a pureza da comunidade. Os olhares atentos se fixavam em cada frase, como se ali, entre aquelas paredes sagradas, o destino de André fosse escrito.

O pastor martelava um versículo de Coríntios que ficava preso na cabeça do menino de oito anos: “Não sabeis que os injustos não hão de herdar o reino de Deus? Não erreis: nem os fornicadores, nem os idólatras, nem os adúlteros, nem os efeminados, nem os sodomitas, nem os ladrões, nem os avarentos, nem os bêbados, nem os maldizentes, nem os roubadores herdarão o reino de Deus.”

Ali, não existia o pai — apenas o servo de Deus, que jamais acolheria o filho. André sentia o calor apertar o peito, uma prece sufocada que não encontrava voz.

Anos depois, André chegou ao meu consultório com passos miúdos — um homem alto e magro, voz baixa, cabeça inclinada, olhos no chão. Perguntou onde poderia sentar-se. Indiquei o sofá, e ele acomodou-se com cuidado, envolvendo-se nas almofadas como quem busca um escudo contra o mundo lá fora. O silêncio se estendeu por minutos, até que, rompendo a quietude, sua voz saiu baixa, quase um sussurro:

— Disseram que aqui eu posso me encontrar, no meio desse emaranhado que é minha vida. Mas, pra ser sincero, não sei nem por onde começar…

As palavras pairaram no ar, carregadas de uma sinceridade crua, abrindo uma fresta no silêncio que o cercava. Era o começo de um caminho incerto, onde o que parecia perdido poderia, talvez, ser reencontrado.

A voz embargada carregava o peso de dois mundos que se recusam a se tocar: ser gay e evangélico. Nunca contou aos amigos da faculdade que era evangélico, nem que seu pai era pastor daquela igreja. Um segredo guardado por anos, um fardo invisível que pesava mais que qualquer palavra dita em voz alta. André tinha 25 anos quando nos vimos pela primeira vez.

Fiquei em silêncio por um instante, sentindo o peso daquele entrelaçamento. Então disse:

— Não se apresse em se achar. Às vezes, basta permitir-se estar, e isso já é um começo.

O aroma fresco do alecrim parecia envolver o espaço, trazendo um leve sopro de liberdade e acolhimento. O silêncio voltou a se instalar, mas agora carregava uma promessa — a de um caminho que podia ser trilhado, passo a passo, sem pressa.

Crescer em um lar neopentecostal foi a tônica da vida de André. Seu pai escolheu esse nome em homenagem a um apóstolo discreto — assim como ele deveria ser.

Nas primeiras sessões, desconfiado, falava pouco, observava os móveis, as poltronas, o divã e parecia distante. Os longos silêncios e o choro contido marcaram esses encontros iniciais. Quando eu dizia “por hoje está na nossa hora”, ele se levantava discretamente, como se ainda não estivesse pronto para partir — mas ainda era cedo para ficar.

O pai de André ocupava um cargo importante na Igreja, uma figura respeitada e admirada pela comunidade. A mãe, por sua vez, movia-se com gestos contidos, uma presença silenciosa ao lado do pai, zelando pela ordem e pela calma da casa. Aos olhos de Deus, eram uma família exemplar — modelo de fé e devoção. Mas sob essa fachada de perfeição, um campo invisível se estendia — feito uma teia silenciosa de silêncios e expectativas não ditas, que apertava o peito de André e negava partes essenciais de sua subjetividade. Era nesse espaço oculto que eu encontrava as marcas que pesavam sobre ele.

Ao relatar sua história de vida, André afirmou que, desde pequeno, não podia escapar da vida comunitária da igreja. A cada fim de semana, as vozes e os passos da igreja preenchiam sua casa, e durante a semana, ele seguia o pai nas orações silenciosas nas casas dos fieis. Não havia espaço para desvios, nem para o brincar solto — as fantasias eram proibidas, engolidas pelo peso das preces e dos cânticos. Entre preces e cânticos, ouvia sobre os desígnios de Deus, sobre a sexualidade correta, o casamento sagrado e a promessa da vida eterna. As palavras sagradas, carregadas de um ideal inquebrável, criavam uma tensão que se alojava no peito de André — um desejo que nascia e se escondia, dividido entre o que sentia e o que podia mostrar.

Mas a infância de André também foi marcada por outra realidade: a violência escolar. Na escola municipal, as risadas cortantes e os olhares que queimavam, deixavam marcas invisíveis, mas profundas — feridas abertas pela acusação de ser “feminino demais”.

Ao se lembrar daquele sermão do pastor, as palavras caíram sobre André como pedras afiadas — aquela lista que martelava em sua cabeça desde menino. Ele não sabia direito o que significava “efeminado”, mas era esse o nome que seus colegas usavam para feri-lo, como se fosse uma sentença definitiva. Estava ali, junto aos que ele temia: os bêbados, os excluídos, os que sua família evitava mencionar.

O tio, que vivia no bar, foi expulso da igreja. Nunca mais pôde vê-lo. A imagem do tio sumia no tempo, como um fantasma que não podia ser chamado de volta.

— Eu era apenas uma criança — soluçou em um de nossos encontros semanais. — Um menino que não queria ser como aqueles que a igreja condenava, mas que sentia crescer dentro de si um medo silencioso de ser exatamente aquilo.

falar das agressões que sofria, notei um sobressalto em André quando o questionei se, de fato, ele era feminino — ou se apenas se mantinha passivamente discreto, tentando sobreviver naquele ambiente hostil. Percebi que essa dúvida refletia uma luta silenciosa entre a identidade que lhe era imposta e aquela que começava a reconhecer em si mesmo, uma divisão que atravessava sua subjetividade e que, aos poucos, a análise começava a iluminar. Talvez ele se identificasse com a mãe, que vivia a opressão diária do pai, pastor e figura de autoridade; naquele universo, só a submissão encontrava espaço. Essa possibilidade se fazia presente em seus gestos contidos e no olhar que desviava ao falar dela.

Aos quinze anos, a mudança de bairro e de escola trouxe a chance de se reinventar — um disfarce cuidadosamente construído. Lá, tornou-se um garoto que não falava sobre a igreja nem sobre a família, mantendo esses mundos separados, como se vivesse uma cisão interna. Perguntei-me se essa cisão era uma escolha consciente ou um mecanismo de proteção para sua subjetividade fragmentada — uma forma de lidar com as exigências conflitantes da família e da escola, do desejo e da proibição, da exposição e do silêncio. Era o início de uma divisão entre dois universos que, até então, pareciam incompatíveis.

Na escola, religião e família eram temas proibidos; em casa, o desejo de cursar a universidade, assim como a sexualidade que começava a despontar, permaneciam ocultos. Essa separação funcionava como um escudo para um eu fragmentado, um mecanismo de defesa contra o impacto da rejeição e da incompreensão, mas que também dificultava a construção de uma identidade integrada.

Fragmentos e Ensaios de Liberdade

Na penumbra do consultório, eu observava André — recém-formado em Geografia, carregando uma urgência que parecia pesar no ar. A voz do jovem, baixa e hesitante, revelou um dos motivos de sua busca pelo processo psicanalítico: — Preciso contar para meus pais que sou gay.

Era um pedido que somava a outros fardos ainda sem nome, mas que começavam a se desdobrar naquele espaço silencioso, onde a reconstrução da subjetividade se fazia possível.

André falava de amores platônicos com a delicadeza de quem enumera feridas invisíveis, cada palavra uma gota de um passado marcado por regras inflexíveis e exclusões silenciosas. A igreja neopentecostal da qual fazia parte impunha uma rigidez que não admitia desvios, e meu papel era acompanhar, pela experiência e pela escuta atenta, que a possível expulsão dele não atingia apenas o indivíduo, mas toda a rede familiar que ousasse manter contato com o excluído.

O jovem carregava um plano — um gesto de autonomia e resistência — que se manifestava na economia silenciosa do dinheiro guardado, um refúgio material contra a iminência da perda. Na análise, o preço desse disfarce tornava-se evidente: o esforço para ocultar a própria subjetividade consumia uma energia imensa, fragmentando-o entre mundos que não se tocavam.

Nos momentos em que os pais viajavam, o álcool se tornava o ar que André respirava, um suspiro clandestino em meio à opressão. Essa cisão interna, entre desejo e proibição, criava um conflito constante, uma dança silenciosa de papéis que ele sentia não lhe pertencer.

Em uma sessão, lancei uma pergunta que reverberou no silêncio:

— E se não forem papéis que você interpreta, mas fragmentos seus que ainda buscam encontro?

A resposta veio quase num sussurro, carregada de uma verdade dolorosa:

— Sinto que estou sempre me escondendo, como se minha vida fosse um teatro onde interpreto papéis que não me pertencem.

Naquele instante, percebi que a fragmentação não era apenas máscara, mas partes de um eu que ainda buscavam integração — um convite aberto, delicado, para o caminho da análise.

No consultório, a angústia de André se tornava quase palpável. Eu ofereci-lhe a companhia de um ensaio silencioso da saída do armário. Cada pessoa LGBTQIA+ trilha um caminho único, em um tempo singular. Eu observava o modo como André pensava, hesitante e cuidadoso: seria uma carta? Um almoço em família? Em que momento arrumar a mala para sair de casa?

A expulsão, pressentida, se aproximava com força crescente, e as semanas em que a decisão de partir se afirmava conviviam com outras, em que o luto toldava sua mente e seu corpo. O amor pela mãe, misturado às fantasias de que, se não fosse pela rigidez da igreja, ela o acolheria, despertava sessões em que o choro se prolongava por vários minutos, como se fosse preciso esvaziar-se para dar lugar a algo novo.

Era um duelo interno — entre o desejo de liberdade e a dor da perda, entre o medo do abandono e a esperança de um futuro onde pudesse ser inteiro. A cada passo em direção à saída do armário, eu via André também caminhar para dentro de si, em uma travessia delicada e necessária.

O Silêncio e o Não-Dito

Um mês antes da mudança, André conheceu seu primeiro namorado. A proximidade da nova vida, longe da casa dos pais, finalmente lhe dava a liberdade para viver seu desejo. O encontro se deu num samba, entre risos e passos de dança, e logo veio o primeiro beijo. O namorado, dois anos mais novo, representava para André um marco de alegria e realização.

Relatar esse relacionamento nas sessões foi um momento de celebração. Pela primeira vez, a felicidade de existir plenamente parecia próxima — um novo lar, um amor que se concretizava. Não precisava mais revelar sua sexualidade aos pais para viver seu namoro; era um passo importante na construção de sua subjetividade.

A mudança chegou, e os primeiros meses no apartamento foram intensos. Nas sessões, André falava com orgulho das conquistas, mas também não escondia as dificuldades do primeiro namoro: encontros, inseguranças, expectativas. Cerca de seis meses depois, o casal fez a primeira postagem nas redes sociais, celebrando uma nova comemoração no mesmo samba onde tudo começou. André, porém, esqueceu de ocultar o post da mãe. Quando conferiu, viu que ela havia visualizado a publicação, mas não reagiu.

O silêncio inesperado reacendeu a dúvida que o acompanhava há anos: a possibilidade da expulsão familiar, mesmo já morando sozinho. A sombra da rejeição voltou a se aproximar, trazendo o medo de perder o pouco que conquistou, de retornar ao lugar onde sempre temeu habitar: a dúvida.

Poucos dias depois, os pais anunciaram que iriam até seu apartamento para conversar. A notícia caiu como uma onda inesperada. André marcou uma sessão extra, sentindo que seria impossível não se angustiar diante daquela visita.

A conversa durou pouco mais de meia hora, relatou a mim. A mãe permaneceu em silêncio, sem sequer abraçar o filho. O pai sentou-se e iniciou um discurso firme sobre a igreja, suas regras e a necessidade de retirar membros que não as seguissem. Curiosamente, não mencionou diretamente a sexualidade de André, mas falou das normas da igreja como um todo.

André ouviu com respeito e firmeza, segurando as lágrimas. O choro veio com força quando o pai revelou que algumas regras haviam mudado — algo que André talvez teria sabido, se tivesse acompanhado a comunidade nos últimos dois anos e meio.

A mudança era que, embora continuassem a não aceitar membros que não cumprissem as regras, as famílias não precisariam mais romper os laços. Poderiam conviver, desde que não apoiassem o que consideravam um “caminho errado” aos olhos de Deus.

Para André, aquilo soou inicialmente como uma bênção inesperada. Surpreendeu-o e fez com que entendesse que a família não o expulsaria de suas vidas, mesmo que a igreja já não fizesse sentido para ele há muito tempo.

Perguntou ao pai sobre o respeito e o acolhimento que poderia receber. O pai respondeu com frieza:

— Ocupar o acolhimento de pai vai interferir nas minhas responsabilidades pela igreja. Contente-se em poder conviver comigo, mas jamais o abençoarei por optar por esse caminho.

A tristeza tomou conta de André durante algumas sessões, e sua busca por reconhecimento familiar ficou frustrada. O peso do não-dito, da bênção negada, parecia preencher todos os espaços. Mas, em meio ao luto, ele tomou uma decisão: disse que iria até a casa dos pais para conversar com a mãe, era importante para ele. Escolheu um horário em que ela estivesse sozinha, buscando um espaço onde pudesse, talvez, ser reconhecido.

Ao chegar, foi recebido com um abraço afetuoso. Choraram juntos, o silêncio finalmente foi rompido pelas lágrimas partilhadas. André, entre soluços, perguntou se poderia ter o acolhimento da mãe por ser gay, se ela seria capaz de abençoar seu relacionamento, mesmo diante da recusa do pai.

A mãe, ainda chorando, segurou suas mãos e disse:

— “Você sempre será meu filho, mas não posso te abençoar.”

Na sessão seguinte, André estava abatido, chorava e se questionava sobre não ser reconhecido pela família, repetia em ciclos o ocorrido. Aos poucos, durante a conversa, reconheceu seu esforço para existir: na construção de uma rede de amigos, no encontro com o primeiro namorado… Seus caminhos foram sendo trilhados ao longo dos anos.

Talvez seguir sem o reconhecimento familiar fosse possível, porque, no fundo, com ou sem o outro, sempre seria só ele, inventando um mundo onde pudesse viver. A história não acaba aqui; ainda está sendo escrita na apropriação do novo apartamento, nas prosas com os amigos, no olhar do namorado e nos almoços aos domingos, quando, algumas vezes, é convidado pela sogra.

Quanto aos encontros com a Psicanálise, seguem vivos, com dias de choro, risos e muitas rupturas — um processo em constante transformação.


A “Trilogia da Bênção” é uma série de contos literários que pretende explorar as complexidades da subjetividade humana, especialmente as tensões entre desejo, vulnerabilidade e relações familiares. Cada história acompanha personagens que enfrentam conflitos internos e externos, navegando entre expectativas sociais, familiares e suas próprias buscas por reconhecimento e pertencimento.

Os casos de Mateus, André e Luiz são narrativas que se desenrolam em contextos onde o silêncio e o não-dito têm papel central, revelando as dificuldades e os processos de transformação vividos por cada um. O espaço da escuta psicanalítica — presente na voz do narrador, que acompanha esses trajetos a partir do consultório — da reflexão e do encontro consigo mesmo aparece como elemento importante para essas jornadas.

Mais do que relatos isolados, esses contos formam um conjunto que busca oferecer um olhar sobre as experiências humanas contemporâneas, convidando o leitor a refletir sobre as múltiplas formas de existir e se reinventar diante dos desafios da vida.

Os relatos que compõem “A Trilogia da Bênção” foram elaborados a partir da escuta clínica, mas construídos como ficção literária, de modo a preservar a identidade e a privacidade dos sujeitos que inspiraram essas histórias. Qualquer semelhança com pessoas reais é intencionalmente evitada, respeitando o sigilo e a ética do processo terapêutico.

José Alberto Roza é Psicanalista/Psicólogo Clínico. Doutor em Psicologia pela Universidade de São Paulo. Professor e Pesquisador em Saúde Mental, Gênero e Sexualidade.

(function(d, s, id) {
var js, fjs = d.getElementsByTagName(s)[0];
if (d.getElementById(id)) return;
js = d.createElement(s); js.id = id;
js.src = “//connect.facebook.net/pt_BR/sdk.js#xfbml=1&version=v2.7&appId=1200972863333578”;
fjs.parentNode.insertBefore(js, fjs);
}(document, ‘script’, ‘facebook-jssdk’));

Fonte: https://revistacult.uol.com.br/home/caso-andre/