Cartas com receitas felizes – Revista Cult

 

A protagonista de Florisbela: Receitas de amizade, uma parceria de Bela Gil com Daniel Kondo, autor das ilustrações e do projeto gráfico do livro, é uma loba-guará vegetariana, de pelagem verde. Ela é dona de um restaurante chamado “Era uma Vez”, nome apropriado, se considerarmos que a proprietária é um ser fantástico e que os funcionários da casa são seres folclóricos: a Cuca, o Lobisomem e o Curupira.

A presença da lobo-guará, animal doce, apesar da aparência às vezes ameaçadora, não parece causal: é um animal ameaçado de extinção. No mundo de hoje, a alimentação saudável também parece correr esse mesmo risco. Também ela precisa ser salva.

Florisbela, além de dócil, não é carnívora, como são os outros de sua espécie. Mas nada disso importa, as pessoas têm medo dela e seu restaurante segue, portanto, vazio. Ela decide então escrever cartas aos amigos, pedindo novas receitas, a fim de tentar conquistar os clientes. Os amigos são nada menos do que Cinderela, a Ex-Princesa da Ervilha, João e Maria, os três porquinhos etc.

Os “ingredientes” para compor a narrativa parecem ter sido escolhidos a dedo, aludindo não só ao mundo dos contos de fadas e do folclore, como também às histórias que compartilhamos à mesa, em torno da comida, e que nos une.

União e compartilhamento são os valores por trás das “receitas de amizade”, e foram decisivos na criação do nome da protagonista, Florisbela, uma espécie de palavra-valise, formada pelos nomes Flora, mãe de Bela Gil; Bela, que, com essa obra, estreia na literatura infantojuvenil; e Flor, filha de Bela.

No livro, as amizades se constroem com trocas de cartas, cujo conteúdo fala de convivência entre os personagens, circunscrevendo o sentido do termo comunidade.         

Em A escrita, Vilém Flusser afirma que “cartas são coisas por que se esperam – ou que chegam inesperadamente. Naturalmente, esperar é uma categoria religiosa: significa ter esperança. O correio fundamenta-se no Princípio da Esperança. Os carteiros, esses gentis funcionalistas medievais, são anjos (de “angeloi” = mensageiros), e o que eles carregam são evangelhos (mensagens felizes conforme a esperança amparada pelo correio)”.

As cartas recebidas por Florisbela poderiam ilustrar a afirmação de Flusser. Elas trazem esperança, não só para a sobrevivência de seu restaurante, como também para a construção de um mundo mais justo e solidário. São, portanto, “mensagens felizes”.

Cada carta conta um pouco da trajetória de velhos heróis e heroínas da nossa infância, retomando o fio da meada depois do ponto final de suas histórias originais.

Cinderela, por exemplo, escreve que nunca esqueceu os abusos que sofreu e, por essa razão, decidiu que não haveria criados no castelo onde vive, pois, como diz, “não ficaria confortável vendo alguém ser explorado só para me servir”. Contudo, quando precisa de ajuda, contrata alguém “com salário justo e direitos trabalhistas” assegurados. Em seguida, envia a Florisbela uma receita de pãozinho de abóbora, hortaliça que ela conhece bem.

João e Maria, que ficaram com cáries depois de tanto comer doces na casa da bruxa, agora pretendem estudar, respectivamente, nutrição e odontologia. Ambos entenderam a “importância de ter uma alimentação saudável e balanceada”. Assim como Cinderela, eles transformaram o trauma em aprendizado. Os dois mandam para a protagonista uma receita de um docinho bem apetitoso, garanto, feito com açúcar mascavo.

Embora as cartas tenham sempre um conteúdo edificante, elas não são maçantes, muito menos professorais, isso porque têm uma pitadinha de humor e são capazes de levar o leitor de volta à história original de cada um dos personagens.

Florisbela: Receitas de amizade intercala as cartas recebidas com as receitas propriamente ditas, que de fato são fáceis de fazer e, até onde pude testar, sempre bastante saborosas.

O projeto e as ilustrações de Kondo são como aqueles ingredientes que dão um toque especial ao prato, mas que precisam ser usados com cuidado e precisão para que não roubem o gosto dos outros ingredientes ou passem despercebidos. Só um grande chef sabe como evitar os dois erros. É o segredo da sua arte.

Se nas receitas as ilustrações são didáticas e ajudam o leitor (mirim ou não) a não se perder na preparação do quitute, já nas cartas Kondo explora outras possibilidades, ousando à vontade. A ilustração que acompanha a carta da “Ex-Princesa da Ervilha, agora Ciclista da Ervilha”, pontos verdes formam a imagem da ciclista, mas também remetem à ervilha, enquanto a cor amarela alude ao sol e à vida ao ar livre. Os pontos simbolizariam ainda as rodas da bicicleta e o mundo que agora a personagem percorre.

Cinderela é representada como a própria Bela Gil, a rainha do livro.

Há ilustrações bem humoradas, como a do Saci, que surge pulando e carregando uma bandeja de docinhos saltitantes.

Florisbela: Receitas de amizade é, por tudo o que comentei aqui, um livro saboroso, em todos os sentidos. Sua leitura deixará certamente no leitor um gostinho de quero mais.

 

Dirce Waltrick do Amarante é vegetariana há mais de 30 anos. Autora, entre outros, do livro de ensaios Pequena Biblioteca para crianças: um guia de leitura para pais e professore (Iluminuras) e dos livros de ficção para crianças Meu pai é um vampiro  e Meus pais são zumbis (ambos pela Cultura e Barbárie).

 

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Fonte: https://revistacult.uol.com.br/home/cartas-com-receitas-felizes/