“Sobre-viver à própria morte” – Revista Cult

31 de março/1º de abril

ontem foi hoje?
ou hoje é que é ontem?
(Dúvida revolucionária,
José Paulo Paes)

Em cartaz até o próximo dia 6 de julho no Teatro Anchieta do Sesc Consolação e já com nova temporada agendada no Teatro Faap, de 8 de agosto a 5 de outubro próximos, Lady Tempestade – com dramaturgia de Silvia Gomez, direção de Yara de Novaes e atuação de Andrea Beltrão – é um acontecimento estético e político dos mais consequentes na cultura brasileira dos últimos anos, não somente pela capacidade que o espetáculo tem de, pontualmente, voltar os olhos para trás e cutucar com vara curta (curtíssima, aliás) o monstro da ditadura civil-militar que se instalou no país de 1964 a 1985, mas também pela ampla potencialidade que toda a atmosfera emocional diligentemente construída em cena tem de arrancar à força as farpas que se alojaram na visão de muitos brasileiros nos últimos anos, levando-os a ver cintilância onde somente existe o mais obscuro e venenoso gris. Se ao teatro não compete o uso de outras armas que não a sensibilidade e a inteligência, que aprendamos com o espetáculo, então, a manipular, com os cinco sentidos, varas e gravetos no desarme sagaz de todas as farpas e lascas que ainda haverão de nos lançar olho adentro.

Dramaturgia

O ai
quando um filho

iɒɔ
(O ai,
Alice Ruiz)

A primeira qualidade do espetáculo é dar a conhecer a trajetória de vida dessa brasileira importantíssima que foi a advogada Mércia Albuquerque Ferreira (1934-2003), aguerrida defensora de militantes políticos presos durante os anos de chumbo, especialmente em Pernambuco, que arriscou inúmeras vezes a própria vida para exercer o seu ofício. Nesse sentido, a dramaturgia de Silvia Gomez articula muito bem as instâncias da memória e da história, transformando o itinerário pessoal de uma, grosso modo, ilustre desconhecida em uma personalidade notável. (Aqui, o Sudeste, que se arroga a posição de aluno exemplar no vestibular da brasilidade geral, encolhe-se diante da ignorância de não conhecer uma figura seminal da brasilidade nordestina). As reminiscências registradas nos diários de Mércia avolumam-se em uma densa memória vivida não somente na esfera da singularidade da pessoa da advogada, mas também no âmbito do tempo social em que ela está inscrita, levando todo o conjunto mnemônico a adentrar com muita segurança os domínios da História. A principal linha de força da dramaturgia é ouvir as angústias da personagem vividas em âmbito de sua vida privada e amplificá-las na esfera pública. O texto então se propõe a fazer a pergunta que Paul Ricoeur apresenta em A memória, a história e o esquecimento: “A memória é primordialmente pessoal ou coletiva?”, desdobrada nesta outra indagação: “A quem é legítimo atribuir o páthos correspondente à recepção da lembrança e a práxis em que consiste a busca da lembrança?”. Lady Tempestade, diga-se de passagem, um belo nome inventado, convida o espectador a se emocionar com as histórias de Mércia e a reviver, por extensão, uma dolorida memória da recente história do Brasil.

O uso dos Diários 1973-1974, de Mércia, publicados em 2023 pela Editora Potiguariana, é parcimonioso no texto de Silvia Gomez, levando a dramaturgia a um rico jogo entre memória e imaginação que garante à empreitada seu voo mais alto. Ambas as esferas não competem entre si, antes se evocam mutuamente: imaginar outras situações irreais é confrontar o espectador com a realidade mais bruta; imaginar outras Mércias invadindo a cena é lembrar-se da Mércia real. A imaginação está voltada ao ficto, ao fantástico, mas tende também a roçar o fantasmático – e aprendemos com a peça que “o teatro é sempre muito gentil com os fantasmas”. Ou seja, desde a aparição do rei Dario em Os persas, há 2.500 anos, a memória do teatro vive da exumação de corpos e da exposição de corpos sem sepultura – situação básica com a qual Lady Tempestade trabalha fazendo uso da pena da tragicidade e da tinta da ironia.

Direção

Construir torres abstratas
porém a luta é real. Sobre a luta
nossa visão se constrói. O real
nos doerá para sempre.
(Torres,
Orides Fontela)

A direção de Yara de Novaes investe com muita energia na configuração narrativa do espetáculo, fazendo com que o ato de narrar seja um gesto de encontro e de compartilhamento. De dores e de valentias. Talvez os assentos extras instalados nas laterais do palco sejam somente um recurso de ampliação da lotação do teatro, mas servem também de ambientação para o estreito diálogo que se estabelece muito rapidamente entre a cena e os espectadores mais próximos, e que se estende a toda a plateia, a rigor. A diretora concebe um espetáculo em que o teatro é uma forma de comunicação ampla, franca, intensa, imoderada, recusando o proselitismo e a doutrinação que têm marcado algumas das experiências do teatro político contemporâneo. Não nos esqueçamos de que um dos sentidos primeiros da palavra comunicar é “tornar comum”, “deixar agir o comum”, como nos ensina o mestre Muniz Sodré. Assim, a “História” de Mércia Albuquerque e as “estórias” apresentadas no palco por dramaturga, diretora e atriz transcendem a esfera da singularidade de uma profissional do Direito e estabelecem vínculos mais estreitos com a experiência social de Justiça. As aflições da advogada são comuns a nós, e o modo como o espetáculo se constrói deixa agir em nós o sentimento comum de indignação moral e ética. Em Olha-me e narra-me: filosofia da narração, Adriana Cavarero observa que, ao narrar, instauramos um campo relacional e político, no qual o particular se destaca e põe em xeque o pensamento abstrato, que tantas vezes negligencia a experiencia vivida. Dessa forma, para a filósofa italiana, então, narrar é um ato de resistência. Outra coisa não faz Yara de Novaes senão investir nesse movimento, propondo em cena o encontro de dois Brasis, o de sessenta anos atrás e o de agora. A segunda qualidade do espetáculo, então, é fazer a trajetória acidental de uma mulher comum, que a vida se encarregou de tornar excepcional, coincidir com o percurso histórico de um país em que já choraram Marias, Mércias e Clarices, e hoje ruminam o ódio mais violento Jaíres, Helenos e Bragas Netos. Para a diretora do espetáculo, a matéria narrada é um misto de existência e relação, mas, sobretudo, alerta e atenção.

Atuação

Comungo da ira fraterna
molho o dedo na lágrima benta,
e na saída da igreja
minha culpa expiarei:
darei esmolas ao homem
que torturei.
(Anistia,
Leila Míccolis)

Que Andrea Beltrão é uma intérprete tarimbada, isso todos sabemos. O que é notável em Lady Tempestade é que ela consiga ainda surpreender a plateia com uma performance que alia apuro técnico e alta voltagem emocional, a terceira grande qualidade do espetáculo. O corpo da atriz pulsa em cena, e muitas vezes – ainda que saibamos que toda arte também é artifício – sua atuação beira a autoexposição. Revelar-se aos outros é assumir uma identidade essencialmente política, o que se configura no esteio da empreitada. Não há distanciamento crítico, atitudes contemplativas, tendência à abstração. As muitas facetas de Mércia Albuquerque surgem para Andrea Beltrão como um daimon, segundo a conotação grega do século V a.C.: uma potência estranha, exterior, perturbadora e incontrolável. Como uma tempestade. Que aos poucos se suaviza e se revela e se transforma em patrimônio do outro. Seja ele a atriz ou o espectador. Por meio da comovente (co-mover, movimentar junto a) mediação da atriz, o daimon de Mércia se apossa de todos nós, e a figura da advogada se converte em patrimônio ético, histórico, político.

Lembrar, escrever, encenar

Viva o Brasil
Onde o ano inteiro
É primeiro de abril
(Poemeu eufemérico,
Millôr Fernandes)

Assim como o livro de Marcelo Rubens Paiva, Ainda estou aqui, transformado no filme de Walter Salles, Lady Tempestade presta um importante serviço à causa da relação entre memória, história e testemunho e memória, história e esquecimento, indagando-se o que significa elaborar o passado a partir da manifestação da corporeidade do sofrimento e da invocação de uma “ética da compaixão”. No ensaio “Após Auschwitz”, Jeanne Marie Gagnebin lembra que o pensamento de Adorno sobre o mais emblemático campo de concentração nazista levou o filósofo a tratar de uma dimensão do sofrimento humano muito pouco pensada pela filosofia, “mas enfaticamente evocada nos relatos dos assim chamados sobreviventes: essa corporeidade primeira, no limiar da passividade e da extinção da consciência, que uma vontade de aniquilação, esta sim, clara, precisa, operacional, se esmera em pôr a nu para melhor exterminá-la”. Indo em busca dos rastros deixados nas páginas dos diários de Mércia Albuquerque, Lady Tempestade promove um bem-vindo acerto de contas de nossos afetos políticos com a indignação. Não somente pelas cicatrizes impressas em centenas de corpos presentes ou desaparecidos, mas também pelas nódoas deixadas em todas aquelas consciências perversas que, ativamente ou por omissão, apoiam a violação da dignidade humana.

Lady Tempestade faz do rastro, da nódoa e da cicatriz metáforas de uma memória que não pode ser apagada. Declarar a preteridade do passado não cabe à proposta. Tornar o passado nosso contemporâneo, sim. Com vista a que ele não volte a assombrar o futuro. A presença do que urge ser lembrado e relembrado está garantida na sua forma de representação em cena. Por fim, cumpre lembrar que Lady Tempestade é um espetáculo de dicção feminina que evita dar vazão à definição abstrata e deixa o imaginário penetrar em grandes ondas. Andrea, Mércia, Silvia e Yara tecem um tipo de narração que, ainda segundo Adriana Cavarero, as mulheres costumam converter em amor à vida, por oposição ao pensamento masculino, obcecado pela abstração conceitual e pela devastação. Não à toa os personagens que infligem os maiores sofrimentos na narrativa jamais são nomeados em cena, sendo tratados antes pela literal alcunha de gafanhotos. Muito embora o reino dos insetos não mereça tamanha desonra.

LADY TEMPESTADE

Até 6 de julho
De quinta a sábado, às 20h; domingo, às 18h

Teatro Anchieta – Sesc Consolação

Rua Dr. Vila Nova, 245 – Consolação – São Paulo (SP)

Lotação: 280 lugares
Duração: 70 minutos
Classificação indicativa: 12 anos
Ingressos: R$ 70, R$ 35, R$ 21

Welington Andrade é bacharel em Artes Cênicas pela Uni-Rio, mestre e doutor em Literatura Brasileira pela USP e professor da Faculdade Cásper Líbero.

(function(d, s, id) {
var js, fjs = d.getElementsByTagName(s)[0];
if (d.getElementById(id)) return;
js = d.createElement(s); js.id = id;
js.src = “//connect.facebook.net/pt_BR/sdk.js#xfbml=1&version=v2.7&appId=1200972863333578”;
fjs.parentNode.insertBefore(js, fjs);
}(document, ‘script’, ‘facebook-jssdk’));

Fonte: https://revistacult.uol.com.br/home/sobre-viver-propria-morte/