Com quantos apagamentos se faz a cultura brasileira contemporânea

 

Na região do Butantã, em São Paulo, uma agradável rua residencial leva o nome de “Poetisa Colombina”. Os passantes, trabalhadores e talvez os próprios moradores do local e da cidade não tenham conhecimento da história de vida intensa, atribulada e prolífica que se esconde atrás da homenagem municipal.

Yde Schloenbach Blumenschein, que assinava sob pseudônimos, um deles Colombina, foi uma poetisa parnasiana do nosso país com mais de dez coletâneas de poesias, além de ser uma das poucas salonnières brasileiras – as anfitriãs que realizavam saraus literários à moda francesa entre os séculos 16 e 20.

A partir dessa história e em referência à obra de Paul Ricoeur e Jean-Pierre Changeux [O que pensamos?], lança-se a pergunta: De que e de quem lembramos? E o que nos é permitido conhecer à larga?

É evidente que não se deseja alcançar o fenômeno de Funes, personagem do conto de mesmo nome de Jorge Luis Borges, inclusive porque sabemos que esse não seria um dom, mas uma verdadeira tragédia. A complexidade da relação entre recordar (“trazer de volta ao coração”, pela etimologia) e esquecer poderia – ou deveria? – ser contrabalançada por uma memória que se beneficia das vantagens do olvido e reconhece a necessidade da evocação do passado. Mas esse equilíbrio é permeado por muitos fatores, inclusive a volição individual e coletiva e a multiplicidade de formas de lidar com os registros feitos pela mente.

Em Ignorância: uma história global, Peter Burke se concentra em um primeiro momento em três grandes tópicos: “não saber algo, não querer saber algo e não querer que outras pessoas saibam”. (Tradução de Rodrigo Seabra).

No primeiro tópico a definição de ignorância parece ser a “tradicional”, ou seja, é “a ausência ou privação de conhecimento. Tal ausência ou privação é muitas vezes invisível para o indivíduo ou grupo ignorante, uma forma de cegueira que tem consequências gigantescas”, como Burke discute ao longo da obra.

Não querer saber já é algo mais complexo, pois há uma razão para isso. Burke cita como exemplo a história dos colonos britânicos na América do Norte, na Austrália e na Nova Zelândia, “que tentaram ignorar a existência dos povos que já viviam naquelas regiões, ou pelo menos ignorar a reivindicação de propriedade que aqueles grupos poderiam ter sobre seu território. Os colonos trataram a terra como se estivesse vazia ou não fosse propriedade de ninguém”.

Não querer saber algo ou fingir não saber algo passa também pelo conceito de esquecimento, que seria “a passagem do conhecimento de volta à ignorância”. Essa amnésia também pode ser provocada por razões diversas. No caso dos acadêmicos, Burke fala de uma tendência descrita por Robert Merton como “amnésia de citação”, ou seja, “uma falha em se referir aos seus predecessores em seu campo de estudo”.  Burke afirma com um certo sarcasmo que, “mesmo os acadêmicos mais conscientes, ainda que reconheçam alegremente pequenas dívidas a um ou a outro estudioso, às vezes se esquecem de citar o predecessor a quem mais devem”.

Por aqui, dentro e fora da academia a “amnésia de citação” parece estar se tornando a coqueluche do momento, para usar uma expressão pitoresca, e tirando o vigor da história da nossa cultura. Na recente lista de melhores livros deste início de século, por exemplo, ficaram de fora alguns nomes que seriam, se lembrássemos da nossa história, incontornáveis. Entre eles o dos poetas Augusto de Campos, considerado o “maior poeta vivo do Brasil”, e Paulo Henriques Britto, que recentemente ingressou na Academia Brasileira de Letras.

Hoje, ao falarmos sobre língua, quantos citam em suas conversas o longo ensaio Língua e realidade, do pensador checo-brasileiro Vilém Flusser, publicado em 1963? Uma estudiosa que parece também ter sido esquecida nas novas publicações sobre o tema é a profa. Amini Boainain Hauy, que publicou alguns livros sobre a língua portuguesa, inclusive Gramática da Língua Portuguesa Padrão com comentários e exemplários, obra que ficou em terceiro lugar na categoria Teoria/Crítica Literária, Dicionários e Gramáticas do Prêmio Jabuti, em 2015.

E ao mencionar virtuoses do violão, quantas vezes ouviríamos o nome de Rosinha de Valença, que trabalhou ao lado de estrelas e astros festejados até hoje como Sarah Vaughan, Stan Getz, Martinho da Vila, Maria Bethânia e Miúcha?

Ricoeur, a partir de Matéria e memória de Bergson e da obra de Sigmund Freud, afirmou que o negacionismo histórico é uma das patologias da memória, a qual pode se apresentar com distintos sintomas. Um deles é a fabricação ideológica dos elementos mnemônicos, isto é, o manejo dos eventos e pessoas que devem compor a história celebrada, imposta e transmitida por diversos meios. Outro é a “memória impedida”: eventualmente recordamos figuras e cenários relevantes, porém, através de um falar que mais se assemelha à repetição sem conscientização da importância daquela pessoa ou situação para uma determinada construção. Livros, filmes, músicas que mencionam ou resgatam algo ou alguém do limbo do olvido num dado momento ou recorte, mas que, assim como aquele que recebe o reconhecimento e é puxado para fora da caverna da desmemória temporariamente, também acabam se destinando aos confins do apagamento.

O terceiro sintoma é justamente a própria “amnésia de citação”, que pode ter a ver também com uma certa preguiça, a de ir além do que está diante dos olhos, a de ter que pensar em como chegamos aqui. Em termos ricoeurianos, esta seria a falta de vontade de recorrer à “perlaboração”, isto é, ao trabalho de rememoração que envolve luto e perdão por termos nos desprendido de objetos históricos e culturais, impregnados de amor, ódio ou indiferença induzida.

Há também quem estimule essa amnésia, pois apagar o trabalho dos precursores significa lançar luz apenas no novo, como se ele fosse o trabalho fundador. O estímulo à fabricação de uma história cultural oficializada. Vale dizer que isso nada tem a ver com Make it new!’ [Inove!’], o lema que Erza Pound apresentou aos colegas de rebeldia antes da Primeira Guerra Mundial, pois inovar não significava apagar o que vinha antes, ao contrário, partia daquilo que já existia para justamente romper com ele. Como lembra Peter Gay, os modernistas transgrediram deliberadamente as regras tradicionais.

Em O gênio não original, Marjorie Perloff reflete sobre o papel da citação, da recontextualização e da reciclagem na literatura ao longo do século 20 e do início do século 21. Essa reciclagem é o que se chama de “não original”. Aliás, não haveria nada original, pois sempre estaríamos em diálogo com o que lemos, o que ouvimos…

Mas promover o negacionismo histórico agravando seu sintoma mais emblemático, a “amnésia de citação”, parece ser mais instigante em termos de autopromoção, que se reverte em capital pessoal e, muitas vezes, financeiro. Essa é também uma forma de manter guardado um segredo, o qual, diz Burke, é “relevante dentro do tema da ignorância, pois um segredo envolve não apenas um pequeno grupo que está por dentro do conhecimento, mas também um grupo maior que é mantido na ignorância, ou seja, fora do circuito”.

Conhecer os precursores é ter acesso ao “segredo” da nossa cultura, é entender como chegamos aqui e pensar em novas possibilidades para o futuro, as quais podem romper com a tradição, como fizeram os modernistas, e como fazem as vanguardas de todas as eras, mas sem jamais romper com o fio da história.

 

Dirce Waltrick do Amarante é professora da Universidade Federal de Santa Catarina, tradutora, escritora e ensaísta. Autora de Para ler Finnegans Wake de James Joyce e Metáforas da Tradução, ambos publicados pela Iluminuras.

Fedra Rodríguez é especialista em comunicação, tradutora, escritora e palestrante. Traduziu, entre outros, James Joyce, Raymond Roussel e Juan Carlos Cirlot.

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Fonte: https://revistacult.uol.com.br/home/com-quantos-apagamentos-se-faz-cultura-brasileira-contemporanea/