Um novo texto que ganhou força no Senado Federal pode alterar significativamente o curso das punições impostas aos condenados pelos ataques golpistas de 8 de janeiro de 2023.
De acordo com reportagem publicada pelo Estadão, a proposta articula mudanças que podem resultar na liberdade imediata de ao menos 249 réus já sentenciados pelo Supremo Tribunal Federal (STF), inclusive em casos com penas de até 17 anos de prisão.
A iniciativa tem o apoio de lideranças como o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (União-AP), e se baseia em projeto apresentado pelo senador Alessandro Vieira (MDB-SE). O texto propõe três alterações centrais no Código Penal: a redução das penas previstas para os crimes de golpe de Estado e abolição violenta do Estado Democrático de Direito; a proibição da aplicação simultânea desses dois tipos penais; e a criação de um novo tipo penal, mais brando, para quem agiu sob influência de multidão ou tumulto.
A proposta surge como alternativa ao projeto de anistia ampla e irrestrita em discussão na Câmara dos Deputados, que poderia beneficiar diretamente o ex-presidente Jair Bolsonaro. No Senado, no entanto, a abordagem é mais restritiva: os benefícios se limitariam aos réus que não participaram do planejamento ou financiamento dos atos — os chamados “massa de manobra”. Já os mentores e articuladores continuariam sujeitos às penas mais severas da legislação atual.
Segundo o professor de Direito Penal da USP, Gustavo Badaró, a mudança legislativa poderia ter efeito retroativo e beneficiar condenados com penas já fixadas. “Haveria uma revisão penal que poderia levar ao regime semiaberto, mas seria analisado caso a caso”, explicou. Isso ocorreria porque, ao unificar os crimes principais e reduzir suas penas, muitos réus poderiam ter suas sentenças reclassificadas para penas inferiores a 8 anos — patamar que permite o cumprimento inicial em regime semiaberto.
Um exemplo citado na reportagem é o da cabeleireira Débora dos Santos Rodrigues, famosa por pichar a frase “Perdeu, mané” durante os atos em Brasília. Condenada a 14 anos de prisão pelo STF, ela já cumpriu quase três anos em prisão preventiva e atualmente está em regime domiciliar. A nova lei permitiria a progressão imediata ao regime semiaberto.
O projeto também introduz um novo tipo penal para atos contra a democracia cometidos por quem agiu sob pressão de tumultos ou multidões. Badaró avalia que a norma, caso aprovada, teria maior aplicação em processos futuros. “Dificilmente alguém se beneficiaria por essa ideia agora”, pondera.
No entanto, outros dispositivos do texto poderiam favorecer, ainda que indiretamente, o próprio Bolsonaro. O criminalista Marcelo Crespo, da ESPM-SP, ressalta que, ao impedir a aplicação cumulativa dos crimes de golpe de Estado e abolição violenta, a proposta reduziria o risco de condenações múltiplas. “Isso beneficiaria lideranças como Bolsonaro, que responderiam apenas pelo crime mais grave, evitando o acúmulo de penas”, explica.
Para Crespo, a proposta representa um perigoso precedente. “Disfarçada de técnica legislativa, ela pode funcionar como um atalho jurídico para reduzir a responsabilização de figuras centrais, afetando diretamente investigações e processos em curso”, alerta.
O criminalista Renato Stanziola endossa a crítica e sustenta que eventuais excessos nas penas deveriam ser revistos pelo próprio STF, e não por intervenção do Legislativo. “O caminho mais legítimo seria o STF reavaliar os casos”, afirma.
Além das implicações jurídicas, os especialistas destacam os riscos políticos e simbólicos. Crespo afirma que uma mudança legislativa nesse contexto pode ser interpretada como leniência com crimes contra a democracia. “O ordenamento jurídico não pode ser moldado ao sabor das conveniências políticas do momento”, afirma.
A disputa sobre o tema também expõe um racha entre Câmara e Senado. Na Câmara, o presidente Hugo Motta (Republicanos-PB) sofre pressão para pautar com urgência o projeto de anistia, enquanto o texto alternativo enfrenta resistência de lideranças do PL, como o deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), que defende perdão amplo. “Vamos fazer uma ofensiva em várias frentes”, declarou.
Já o deputado Chico Alencar (Psol-RJ) considera que a proposta do Senado pode interferir indevidamente em processos judiciais. “Seria uma espécie de obstrução à Justiça”, advertiu, defendendo debates abertos e audiências públicas para tratar do tema.
No Senado, a divisão também é evidente. Enquanto parlamentares como Carlos Portinho (PL-RJ) e Sérgio Moro (União Brasil-PR) apoiam a anistia, outros, como Jorge Kajuru (PSB-GO), preferem o texto alternativo. “Concordo com os benefícios que o texto pode trazer para pessoas como aquela moça que escreveu ‘perdeu, mané’. Isso é desproporcional e inaceitável”, disse Kajuru.
Autor da proposta original, o senador Alessandro Vieira sustenta que o objetivo não é promover impunidade, mas corrigir excessos. “As penas aplicadas na maioria dos casos me parecem exageradas e insuficientemente fundamentadas. Vamos ver como será daqui pra frente”, concluiu.
Fonte: https://agendadopoder.com.br/articulacao-no-senado-pode-libertar-249-reus-do-8-de-janeiro-e-suavizar-pena-de-bolsonaro/