Vereadores propõem uso da Bíblia em escolas de 13 capitais e reacendem debate sobre laicidade

Propostas de vereadores em diversas capitais brasileiras vêm reacendendo a discussão sobre o uso de conteúdo religioso em escolas públicas e particulares. Projetos de lei em ao menos 13 cidades, segundo levantamento do portal UOL, tentam autorizar a disponibilização da Bíblia como material de apoio pedagógico, além da realização de “intervalos bíblicos”, com momentos de oração, louvor ou leitura de textos sagrados durante o recreio. Especialistas em educação e direito constitucional, no entanto, alertam que tais medidas violam a Constituição e desrespeitam o princípio da laicidade do Estado.

O movimento é capitaneado por parlamentares com vínculos religiosos, especialmente evangélicos e católicos, e reflete, segundo analistas, o avanço de pautas conservadoras no cenário político nacional. As iniciativas defendem que a leitura da Bíblia e a promoção de atividades religiosas nas escolas podem estimular valores como respeito e paz, além de contribuir para o combate ao bullying. No entanto, a legalidade dessas propostas é questionada.

— Levar uma vertente de pensamento que não é baseada na ciência, que é uma interpretação de mundo, não cabe — afirma Ângela Sogilo, professora sênior da Faculdade de Educação da Unicamp. E continua:

— A leitura de um trecho bíblico não favorece em nada o desenvolvimento. Pelo contrário, o texto religioso, seja qual for, se baseia em dogmas. Ele não favorece aquilo que é função da escola, que é o desenvolvimento do pensamento crítico e emancipado. […] A escola pública não pode ser terra de ninguém. Ela se orienta pelos princípios constitucionais, e isso deve ser preservado — conclui.

Propostas em diferentes cidades

Em Belo Horizonte, a Câmara Municipal aprovou no mês passado um projeto que autoriza o uso da Bíblia como material de apoio nas escolas. A proposta é da vereadora Flávia Borja (DC), que defende a medida com base na popularidade do livro. “A Bíblia é o livro mais lido, mais vendido e mais publicado em todo mundo”, argumenta. Ela nega que a iniciativa fira a laicidade do Estado: “Não fere a laicidade do Estado, apenas permite que a Bíblia seja consultada como material de apoio”. O texto está pendente de sanção do prefeito Álvaro Damião (União).

Em outras cidades, os projetos propõem ritos e espaços dedicados à prática religiosa. Em São Luís, há uma proposta para a criação de “espaços de meditação religiosa” e outra que autoriza a realização de cultos e ritos voluntários nas escolas. Já em Florianópolis, o vereador João Padilha (PL) defende sua proposta afirmando que “a preocupação é garantir a proteção jurídica aos professores e diretores que querem usar a Bíblia nas escolas”. Segundo ele, a Comissão de Educação tem recebido o texto com receptividade, pois “70% da população se declara cristã”.

Em Salvador, o vereador Cézar Leite (PL) é autor de uma proposta semelhante e afirma que o objetivo é proteger o direito de expressão da fé. “Vivemos em um Brasil muito estranho. Às vezes, o óbvio precisa ser defendido”, afirma. “É algo que a gente quer garantir. O óbvio a ser defendido é o direito do cidadão de professar sua fé.” Para ele, o Estado é laico, “mas não proibitivo”.

A vereadora Leia Klébia (Podemos), de Goiânia, também reforça que a proposta é voluntária e tem apoio popular: “Temos contato com um grupo de mães que já participam desses intervalos bíblicos. É só manter uma convivência respeitável”.

Decisões judiciais e críticas

Apesar dos argumentos apresentados pelos parlamentares, decisões anteriores do Supremo Tribunal Federal (STF) e de tribunais estaduais têm considerado inconstitucionais leis semelhantes. Em 2021, o STF derrubou uma legislação de Mato Grosso do Sul que obrigava a disponibilização da Bíblia em escolas. Em 2022, a Justiça da Paraíba invalidou uma norma de Campina Grande que sugeria a leitura do livro sagrado em sala de aula.

Para João Marcelo Borges, consultor sênior de educação da União Europeia, as propostas integram um movimento mais amplo de avanço conservador sobre a escola pública.

— Vejo como mais um movimento que tem outros exemplos, como o Escola sem Partido, a militarização das escolas. Tudo isso faz parte de um objetivo maior de dominação e doutrinação no âmbito das escolas, que é exatamente o que parte desse grupo critica — afirma o consultor.

Ele alerta para o impacto prático dessas iniciativas na rotina dos professores:

— Nossos professores mal têm dado conta do currículo obrigatório, agora serão obrigados, sob pena de pressão [dos pais ou da direção escolar], a usar a Bíblia. É uma proposta que não entende a educação nem como fazê-la com qualidade e que desrespeita os professores.

Borges também aponta o risco de precedentes:

— Colocar a Bíblia como material didático pode ser o primeiro movimento cujo próximo passo é inserir o criacionismo [tese de que o Universo foi criado por uma intervenção divina] no ensino da Biologia. Todos nós queremos reduzir o bullying dentro das escolas, mas essa proposta não traz evidência nenhuma de que contribua para o fim da violência — enfatiza.

Religião na escola e a Constituição

A Constituição brasileira estabelece que o Estado é laico, ou seja, não adota nem favorece nenhuma religião. Já a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) reforça esse princípio ao assegurar a liberdade de consciência e crença e a separação entre o ensino público e conteúdos religiosos confessionais.

Para especialistas, permitir momentos de leitura bíblica, louvor ou uso do livro como apoio didático fere esse preceito. Ainda que a participação seja voluntária, como defendem os autores dos projetos, a simples inclusão de atividades com base em uma tradição religiosa específica já configura violação da neutralidade que deve reger o ambiente escolar.

Apesar disso, os projetos continuam avançando em câmaras municipais, impulsionados por bancadas religiosas e pelo argumento da liberdade religiosa. Enquanto a legalidade dessas propostas é questionada no Judiciário, o tema segue polarizando o debate público sobre o papel da religião nas instituições educacionais brasileiras.

Fonte: https://agendadopoder.com.br/vereadores-propoem-uso-da-biblia-em-escolas-de-13-capitais-e-reacendem-debate-sobre-laicidade/