No começo dos anos setenta, o cineasta italiano Pier Paolo Pasolini escreveu vários artigos para a imprensa italiana afirmando que estávamos a produzir um fascismo ordinário através das mudanças em nossa sensibilidade, em nossa linguagem e em nossos afetos produzidas pela sociedade de consumo. Durante certo tempo, não nego que lia esses textos com certa condescendência, como quem acredita que artistas tem o direito ao exagero como forma de sensibilizar a sociedade para certos riscos sempre possíveis. Ou seja, era evidente que a uniformização do tempo, dos hábitos, dos desejos pela extensão indefinida do consumo dos mesmos produtos e dos mesmos discursos por todos os lados trazia riscos como a esterotipia e o culto a uma ideia de progresso que era apenas uma forma de sacrifício das singularidades de territórios. Mas daí a falar em fascismo parecia algo um pouco rápido demais. Era verdade também que a Itália passava, naquele momento histórico, por atentados de extrema-direita acobertados pelo governo e sem sequências de investigação. Para um país que havia inventado o fascismo, havia mesmo do que se preocupar. Mas a história parecia que tinha caminhado para outro lado, sem esses extremos.
E então passou-se cinquenta anos. Agora, o fascismo global bate nossa porta com uma força inesperada. Nesse momento, é difícil não lembrar de uma frase de Adorno: “na psicanálise, só os exageros eram verdade”. Como psicanalistas que exageram para ver a verdade, os artistas funcionam como sismógrafos, percebendo as modificações nas placas tectônicas antes dos terremotos. Pasolini não estava falando apenas de seu tempo. Ele estava antevendo o nosso, pois sabia que as forças políticas eram débeis para compreender como a cultura e a comunicação são eixos centrais da formação de nossa subjetividade. E estávamos sendo formados para aprender a indiferenciar informação e entretenimento, a ver apenas o que tem impacto, o que provoca, o que se entrega rapidamente, a nos anestesiarmos em um horizonte onde as piores violências bélicas são mostradas antes de imagens do amor que temos pelos gatos. Estávamos sendo formados para nos adaptarmos a essa linguagem, a funcionalizarmos nossa personalidade, a falarmos da mesma forma sobre tudo. Nunca houve fascismo sem essa dessensibilização e indiferença.
Há alguns dias passou na minha timeline, como se diz atualmente, um chamado para uma greve geral de um dia contra as redes sociais. A ideia era ficar um dia sem utilizar redes. Uma greve de um dia. Era difícil não sentir um riso amargo subindo. “Mas que época é essa que acredita que greve tem hora para acabar e que deve durar um dia? Não é, ao contrário, a confissão de uma enorme impotência? Algo do tipo: não conseguimos mais sair daqui. O máximo que conseguimos fazer é fingir não precisar das redes por um dia”.
Durante certo tempo, vendeu-se a ideia de que havíamos entrado em uma era mais democrática da comunicação. Não estávamos mais submetidos a esses sistemas onde poucos falam e muitos escutam, como era o caso na era dos broadcastings, das televisões nacionais controladas por poucas famílias ou dos monopólios de comunicação onde poucos grupos detinham, em uma mesma região, jornais, revistas, rádios, televisões. Agora, havíamos entrado em um modelo no qual todo receptor era um emissor em potencial, um produtor potencial de conteúdo. Graças a tal nova configuração da produção da comunicação, as opiniões se multiplicariam e seu celular se tornaria uma verdadeira ágora grega saudavelmente descontrolada e livre. Nesse universo de cada vez menos mediações, você construiria suas próprias redes, conectando-se globalmente com quem julgasse relevante. Ou seja, cada sujeito se tornaria um gestor de suas próprias redes.
Mas eis que um dia acordamos em um mundo mais monofônico do que imaginávamos. Não apenas descobrimos que toda a comunicação mundial agora passava praticamente pela mão de quatro pessoas, em uma dinâmica de aprofundamento de oligopólio que faz o controle de mídia das oligarquias locais parecerem coisa de amador. Havíamos também descoberto que essas quatro pessoas tinham interesses e posições políticas alinhadas com o novo fascismo emergente. Elas podiam simplesmente bloquear informações que não julgassem conveniente, como estamos a ver a respeito do genocídio em Gaza. Elas podiam silenciar perfis, impulsionar outros. E partir de certo momento, comecei a receber todos os dias propagandas da Casa Branca e tweets assinado pelo presidente Donald.
Bem, se fosse só esse o problema, já teríamos material para muita reflexão. Pois seria o caso de se perguntar sobre a partir de quando esquecemos que meios de comunicação tem donos e que esses donos não somos nós? A partir de quando esquecemos que não é possível exercer sua liberdade em um espaço com dono? Durante certo tempo, a luta política também era uma luta pela abertura de outros espaços de comunicação, com outras linguagens e modos de gestão. Mas então veio a conversa de que assim falaríamos apenas para nós mesmos e nos jogaram em uma arena na qual, ao final, não podíamos mais falar como nós mesmos, até o momento em que nossas vozes foram ficando cada vez mais inaudíveis.
Esse certamente é o problema maior: nós não temos mais linguagem porque a única linguagem que restou nos faz agir como fascistas. Pasolini, no fundo, era quem tinha a consciência objetiva do real problema. Redes sociais começaram como redes de circulação de intimidade. Você ia lá, mostrava seu cotidiano, seus encontros, viagens, suas músicas preferidas. Mas logo aprendemos a monetizar nossa intimidade. E assim o Capital conseguiu extrair valor do último espaço que parecia imune à lei do trabalho, a saber, a vida privada. Em um momento de degradação do emprego, era tentador pensar que havia ainda uma forma de sobrevivência. Bastava seguirmos com afinco os tutoriais de selfies e auxiliarmos na reprodução material das ilusões de integração no capitalismo de intimidades. Era melhor do que CLT, ser o empreendedor de sua própria imagem, de sua própria felicidade de viver, de sua própria afirmação da vida. Mesmo que isso significasse trabalhar gratuitamente para algoritmos que 4 pessoas controlam. Ok, há de se reconhecer, o golpe foi mesmo muito bem feito.
Ele foi ainda melhor porque essa completa adesão ao aparato que nos faz nos tornarmos a imagem de nós mesmos, esse culto pela atrofia de nossas linguagens até o ponto de só restar a linguagem da razão econômica, de seus investimentos, de seus retornos, de seus anglicismos, esse culto que, no fundo, é uma adesão ao mais forte, a quem venceu, essa funcionalização de si feita com alegria e desespero só podia mesmo ter consequências políticas catastróficas. Ela era um elemento fundamental para o advento de uma nova psicologia. Uma psicologia mais abertamente autoritária, uniforme, mais incapaz de lidar com o que não se submete à contabilidade, à visibilidade unidimensional e espetacular. Sim, estávamos agora a falar e aparecer como fascistas. Sorrindo como fascistas. Indiferentes como fascistas. Mas havia nos restado nosso mal-estar, nossos sintomas, nossas angústias. Ao final, serão eles que nos tirarão desse terremoto.
Vladimir Safatle é professor titular do Departamento de Filosofia da USP.
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Fonte: https://revistacult.uol.com.br/home/como-as-redes-sociais-nos-fazem-falar-como-fascistas/