Meu brinquedo: nada machuca, nem cansa

 

Aproveitando o ensejo das mulheres adultas que voltaram a brincar de boneca, das discussões sobre homens adultos jogando vídeo game e crianças usando o celular, reencontramos uma questão que psicanalistas, pedagogos e filósofos não se furtaram a fazer: importa para o brincar a materialidade do brinquedo? Ou melhor: o que faz de um objeto um brinquedo?

Para Walter Benjamin, a materialidade do brinquedo e, sobretudo, suas transformações formais importam e podem traduzir, especialmente, a dinâmica das relações entre adultos e crianças. A esse respeito, ele nos relata, por exemplo, como se deu a passagem dos brinquedos minúsculos, em determinado momento do processo de industrialização, para os brinquedos de grande formato. Comentou, nesse contexto, sobre a qualidade da presença da mãe diante dessa mudança: os brinquedos minúsculos exigiam que a mãe ficasse por perto; os grandes, ao contrário, dispensavam a presença materna.

Donald Winnicott também não foi indiferente ao tema da materialidade dos brinquedos. Observando os bebês e seu entorno, o psicanalista inglês passou a descrever uma série de fenômenos e objetos que chamou de transicionais. Winnicott referia-se à naninha, ao bonequinho, à pelúcia que o bebê passa a carregar para cima e para baixo como um objeto sagrado. Ele observou que esses objetos eram remanescentes de uma experiência de cuidado intensa, realizada na medida certa pelo ambiente. Essa medida tem a ver com o encontro e o reconhecimento, no tempo e no espaço, da necessidade do bebê, correspondida pelo gesto da mãe.

Há uma coincidência, segundo Winnicott, entre o momento em que o bebê imagina o que precisa e o momento em que o ambiente lhe oferece justamente aquilo que ele imaginou — e o nome disso é ilusão. Da perspectiva do bebê, é ele quem cria o mundo que encontra. Música, letra e dança. Mais radical ainda é a perspectiva de Winnicott: para ele, o bebê só encontra aquilo que foi capaz de criar.

Quando se vive uma ilusão desse tipo, aprendemos a esperar, a criar imagens antecipatórias do que está por vir com confiança. No entanto, toda ilusão dura pouco.

Rapidamente, o bebê percebe que o que precisa vem de fora e que ele, em vez de controlar, é absolutamente dependente do que está lá fora. Nenhuma desilusão pode ser tão ruim a ponto de durar além do tempo e do espaço que conseguimos suportar. E, nesse caso, essa desilusão é especialmente importante para a atividade de simbolização e a capacidade de brincar.

O brincar é o que surge durante esse primeiro momento de desilusão. É uma reserva de ilusão que permanece inalterada ao longo da vida. Como um nada de mal nos alcança. Esses primeiros brinquedinhos são a encarnação, na matéria, do encontro bem-sucedido entre o bebê e o ambiente. Longe de se referirem à falta da mãe, quando usados de forma transicional, os brinquedos figuram justamente a presença amalgamada da mãe. E é aí que a materialidade do brinquedo faz toda a diferença.

A eleição desse objeto guarda um lastro sensorial com a experiência de cuidado. Costuma ser fofinho, molinho, aconchegante, esteticamente atraente para a criança, porque está referido às experiências primordiais de cuidado, quando o mundo era mais sensação do que sentido. O objeto transicional não significa alguma coisa. Ele é.

Existe uma série de desvios da transicionalidade em que os objetos passam a ser usados como verdadeiros estímulos sensoriais que reduzem a experiência estética à pura sensação, sem impactar o mundo das representações — ou, melhor dizendo, sem interferir na significação, na interpretação, no pensamento a respeito de determinada experiência. Se considerarmos, por exemplo, a superfície lisa predominante ao nosso redor, nas interações e brincadeiras por telas, percebemos como o liso é uma marca estética (e política) do presente que produz efeitos na experiência.

De imediato, temos o efeito de não-distanciamento, uma “coerção tátil”, como nomeia Byung-Chul Han, que nos impele ao touch, em que nada se interpreta, codifica ou faz pensar. O toque, no máximo, se descarrega em um like. Trata-se, inclusive, de uma regressão, no sentido em que a substituição do prazer de tocar pelo prazer de ver —

considerado um marco no desenvolvimento da experiência estética das crianças — deixa de ser valorizada.

Outro desvio importante é o uso do objeto transicional como um objeto fetiche. O objeto fetiche é aquele que não representa a falta; ele tenta preenchê-la, bloqueando a possibilidade de pensá-la. Está no lugar da ausência como presença absoluta, impedindo a elaboração simbólica.

A relação de uma mulher adulta com um bebê reborn, de um homem adulto com o videogame, de uma criança com o celular, não pode ser compreendida fora da complexa articulação entre materialidade, função e afeto investido nesses objetos. Na dúvida sobre o que torna um objeto um brinquedo, talvez valha a pena lembrar da música que transforma os braços abertos em país: o brinquedo é aquilo que nada machuca, nem cansa.

Marília Velano é psicanalista, mestre em psicologia pela Université Paris VII, doutora em psicologia pela USP e professora do Departamento de Psicanálise com crianças do Instituto Sedes Sapientiae. É autora do livro Razão onírica, razão lúdica: perspectivas do brincar em Freud, Klein e Winnicott (Blucher, 2023).

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Fonte: https://revistacult.uol.com.br/home/meu-brinquedo-nada-machuca-nem-cansa/