Luiz pisava fundo. Quase duzentos por hora. A SUV — um Audi Q5 Sportback — rasgava a Anhanguera como se desafiasse o tempo. O passado vinha à tona feito refluxo: quente, ácido, inevitável.
Dentro do carro, Nina Simone tomava o espaço como se tivesse sido chamada:
“The young become the old,
Mysteries do unfold.
‘Cause that’s the way of time…”
Aquela voz. Como se tivesse saído da terra. Como se tivesse enterrado todo mundo que amou e ainda tivesse força para cantar. Luiz engoliu seco. O som no último volume. Trinta anos sem pisar ali — naquela cidade onde seu carro o conduzia — trinta anos cuspidos para fora do tempo. O sol já se punha. A vida tinha seguido, mas ao redor dele o ar ainda cheirava a 1995.
A buzina brutal de um caminhão. Um susto. O volante quase fugiu das mãos suadas. O choro veio sem cerimônia.
Parou no posto de gasolina, já muito próximo de encontrar o pai. Ficou ali por mais de duas horas, fumando ao lado do carro, olhando as pessoas. Pensou em desistir, voltar para a capital.
Na manhã seguinte, Luiz chegou ao consultório com alguns minutos de atraso. Não era comum. Sentou-se, tirou o casaco como quem se despia de um peso, olhou nos meus olhos e disse, sem rodeios:
— Vim direto de Ribeirão. Ribeirão Preto.
Fez uma pausa breve, mas não me olhou. Continuou, quase num sussurro:
— Ainda tenho horror àquela cidade.
Ele contou que havia ido visitar o pai. A decisão veio de repente, num rompante, após um almoço de domingo com alguns amigos. Não planejou nada. Saiu do restaurante direto para a rodovia, com a roupa do corpo e a urgência atravessada no peito. Tinha recebido uma ligação da mãe afirmando que seu pai tinha passado mal. O câncer estava lá, corroendo em silêncio. Como um bicho trabalhando por dentro, devagar, mas certo. A visita ao pai durou menos de uma hora. A noite dormida em um hotel, não conseguiu voltar para a capital.
Luiz habitava ali diante de mim, impactado, entre a velocidade na estrada e o susto com o caminhão. E de repente me perguntou se eu gostava de Nina Simone — segundo ele, a cantora que precisou fugir e nunca mais pôde voltar para casa.
Luiz segurava a caixa de lenços, retirando um a um para secar o rosto que se molhava aos poucos. A voz dele, pausada, carregava o peso de décadas.
— Estacionei o carro e olhei os vizinhos — começou, como se fosse um filme antigo —. Algumas caras ainda são as mesmas… faz tanto tempo, sabe? Como se o tempo ali tivesse parado, junto com os móveis da sala, todos gastos, desbotados.
Ele fez uma pausa, respirou fundo, limpou o rosto com um lenço e continuou:
— Toquei a campainha. Minha mãe abriu a porta, e o susto nos olhos dela foi cortante. Ela só disse meu nome e que meu pai estava no quarto, com a enfermeira. Ela sabe o quanto é difícil voltar lá.
Luiz soluçava, pediu um tempo para beber um copo d’água. Sinalizei que podia ir até a sala de espera. Quando voltou, o olhar se perdeu por um momento antes de voltar para mim, e ele continuou, a voz ainda carregada:
— Eu preciso te contar tudo, quero mesmo contar. Fui até o quarto dele. O velho estava deitado, encolhido sob o cobertor, um corpo tão frágil e diferente daquele homem que um dia cuspiu na minha cara e me expulsou de casa. O câncer corrói, roendo os ossos, mas podia corroer também o orgulho dele. Aquele diabo velho… Sabia que Anhanguera é tupi e significa “diabo velho”? Ou “alma penada”. Mas, se fosse alma penada, seria eu — se aquele caminhão tivesse me matado.
Eu o observei por um instante, sentindo a força do campo que o organizava — a culpa, o ressentimento, a urgência de se vingar. Mas havia ali uma fissura, um espaço onde o desejo de reconhecimento insistia em pulsar, mesmo sem palavras.
— Gosto do início dessa música da Nina Simone, essa que você escutou na estrada, Luiz — e ela começa assim:
“Everything must change,
Nothing remains the same,
Everyone must change.”
O problema é que essa dor parece não passar. Parece que sua vida é uma dança onde passado e presente se atravessam, se confundem, se repetem. Mas e se essa dança não fosse prisão, e sim um lugar onde algo novo pode começar a pulsar?
Ficamos em silêncio. Não para fechar sentidos, mas para abrir um campo diferente — onde a repetição pudesse ser interrompida, e o que parecia imutável pudesse, enfim, se mover.
Entre o amor escondido e a violência exposta
O dia em que Luiz foi expulso de casa ainda reverbera em seu corpo, como uma ferida que não cicatriza. Aos 19 anos, no segundo ano da faculdade, ele conheceu Joaquim, seu primeiro namorado e, para sempre, seu “único amor”. Ficaram juntos alguns meses, sempre às escondidas. Luiz cursava Farmácia, Joaquim, Publicidade. As famílias eram conservadoras demais para aceitar a relação dos dois. Ninguém podia saber da sexualidade deles.
De um lado, um pai fazendeiro; do outro, um pai médico. As mães, donas de casa. Os encontros eram furtivos, silenciosos, marcados pelo medo constante de serem descobertos.
Mas bastou um minuto de descuido: um bilhete. Um endereço. Uma chave. Um encontro marcado. Joaquim queria fazer uma surpresa. A mãe de Luiz encontrou o bilhete na mochila dele e contou ao marido, que acionou a família de Joaquim.
Luiz, em uma sessão, se mostrou saudosista:
— Hoje é 20 de setembro, aniversário de Joaquim. Ele faria 48 anos. E se a gente tivesse ficado junto?
Mostrou o bilhete, guardado com cuidado por 30 anos:
“Eu te quero para sempre! Hoje à noite, te espero nesse endereço. Essa é a chave do portão, para você entrar rápido. Hoje à noite será só nossa!”
Queriam a cena inteira e armaram o flagrante, contou Luiz.
Ele e Joaquim apanharam juntos, abraçados. Negavam tudo, mas as marcas das cintas ficaram. Tentavam se proteger, mas só parou quando se afastaram. A mãe de Joaquim gritava para que parassem; a mãe de Luiz apenas observava de longe. Luiz sabe que sua mãe os entregou — nunca falaram disso, um silêncio que jamais será quebrado, segundo ele.
Joaquim foi despachado para a Europa e nunca mais se viram.
Esse assunto reaparece nas sessões, de tempos em tempos. Dois anos depois, Luiz soube do suicídio do namorado:
— Ele escolheu bem: Ponte das Correntes. A gente falava de ir visitar Budapeste! Eu nunca tive coragem de ir lá. Vou aos arredores, mas a Budapeste, nunca.
Luiz tentou se apaixonar outras vezes. Teve um segundo namorado, por cerca de três anos. Aos trinta, desistiu do amor. Tentou substituir Joaquim, mas não conseguiu. Depois disso, foram apenas casos breves, com garotos entre dezoito e vinte anos, nenhum durando mais de trinta dias.
— Esse é meu prazo! Mais que isso não rola. Eu não vou me casar com ninguém — dizia com frequência durante nossas sessões.
Entre prazer sexual e desejo de morrer amar
Luiz chegou ao consultório cabisbaixo, com o olho roxo e um corte no braço — marcas recentes de uma violência sofrida. Nos dois anos em que nos conhecemos, esse já era o quarto episódio em que, alcoolizado ou sob efeito de outras drogas, ele era atacado enquanto caminhava sozinho pelo centro da cidade, em busca de alguma aventura sexual.
“Meus amigos me chamam de adolescente de quase cinquenta!” — tentou rir, mas a expressão se fechou, e as lágrimas vieram sem aviso.
Desistir de amar deve ser uma dor profunda, mesmo quando se deseja alguém. Mas se o amor morreu, o que resta? Talvez a morte seja o único encontro possível — comentei, suavemente, deixando o silêncio acolher sua dor.
Luiz se lança nas festas de sexo, nos banheiros públicos, nas saunas, como quem busca o único território onde seu corpo gay pode habitar. Fora desse espaço, não há autorização para qualquer relação que não seja efêmera, fugaz. Entre encontros breves, desliza pelos aplicativos de relacionamento ou se perde nas ruas, onde o desejo pulsa em cada esquina. É nesses territórios efêmeros, onde o toque se torna linguagem e o prazer, uma forma de resistência, que ele se encontra — ou ao menos tenta se encontrar — na intensidade fugidia do encontro.
— Eu tô me matando! — confessou, a voz embargada. — Tentei me matar na sauna, me coloco em risco o tempo todo. Nem lá eu me divirto de verdade! Eu só me mato! Mas os remédios eu tomo, me cuido, pelo menos isso…
E de repente, eu disse:
— Seria ótimo se você se divertisse na vida, né? Namorar. Casar. Festas de sexo. Saunas. Profissionais do sexo. E tudo mais… pode ser bom! Mas parece que a autorização que você se deu foi de morrer! Que baita problema, não?
Luiz chegou até mim com um encaminhamento do infectologista. O diagnóstico era claro: uso excessivo de drogas, alta frequência de ISTs e uma resistência crescente às orientações médicas.
O declínio da usina e a construção do império
Foi em uma das primeiras sessões, perto do seu aniversário de 45 anos, Luiz me contou que a mãe lhe revelou a falência do pai. Fazendeiro de cana-de-açúcar, ele teve uma usina por muitos anos, até a falência em 2014. Perdeu quase tudo, segundo Luiz. Logo depois da falência, o câncer apareceu, como se o corpo também cedesse à ruína da família.
— Fiquei feliz, era uma vingança — confidenciou, com um sorriso amargo. — Vendeu tudo e agora só tem a casa onde moram.
Desde então, Luiz começou a enviar dinheiro para a mãe, ajudando nas despesas básicas. Ao longo dos anos em São Paulo, ela o visitava mensalmente, inventando desculpas para as compras na capital. Às vezes, o marido a acompanhava, e nesses momentos, Luiz e ela não podiam se encontrar. Depois da falência, as visitas aumentaram, porque o marido já não controlava mais a situação — Luiz se tornou o homem do dinheiro.
Luiz ergueu sua carreira como quem constrói um dique contra o passado. Primeiro professor de inglês, depois publicitário, sócio em uma agência — degraus que subiu com a urgência de quem precisa provar a si mesmo que existe além daquela cidade que o aprisionou. Trinta anos depois, ele me fala de contratos milionários e viagens a Nova Iorque com o mesmo tom com que descreve o cheiro de hospital no quarto do pai: uma mistura de orgulho e vazio.
— Meu pai nunca saiu dali — disse numa sessão, os dedos tamborilando no braço da poltrona, como se marcasse o ritmo de uma canção que só ele ouvia. — Nunca levou minha mãe para ver o mundo. Eu quero levar, mas ela disse que só depois que ele morrer. Já tem cinco anos que o câncer está lá, e não mata aquele velho.
Perguntei, com cuidado:
— E quando você vai visitar seu pai de novo?
Ele hesitou:
— Vou, mas não sei quando. Acho que preciso ir com ele lúcido. Da última vez, achei que ele estava até bem, mas agora disseram que já está quase morrendo.
— Lúcido a ponto de poder te entender? — insisti.
Luiz engoliu o choro e desabafou:
— Eu preciso que eles entendam que eu sou gay, mas que não tive o tal “câncer gay” que sempre disseram que eu teria.
Entre o cuidado e o distanciamento: o impasse com o pai
Luiz decidiu custear todo o tratamento do pai: medicamentos, plano de saúde, contratou um motorista para a mãe e, nos últimos meses, uma equipe de enfermagem 24 horas por dia, sete dias por semana. Ele habita o cuidado e o distanciamento: seria esse o único cuidado possível?
Mas, nesses cinco anos em que o câncer se instalou no cotidiano da família, Luiz esteve lá apenas duas vezes. A primeira, após um almoço de domingo, numa visita que durou menos de uma hora. O cuidado sempre foi financeiro — quase uma vingança silenciosa.
Em uma sessão, Luiz me contou, com uma mistura de ironia e amargura, uma conversa com sua mãe:
— Pedi para ela contar a ele que quem paga tudo sou eu! Ele pode não querer me ver, mas eu quem sustento tudo.
Ela respondeu que ele sabia desde o início, mas que o respeito ao pai era fundamental.
A segunda visita foi quatro dias antes da morte do pai.
Foi a mãe quem ligou, avisando que o pai pediu para que Luiz fosse vê-lo.
Na sessão seguinte a esse telefonema, ele se questionava, dividido entre ir e não ir:
— O que eu vou fazer lá?
Eu disse, com calma:
— Você tem a chance de ir, Luiz. Ou pode se despedir daqui. A decisão é sua. A morte parece estar chegando.
Enquanto falava, pensei na dama de branco, que caminha silenciosa anunciando a morte, vestida de luz e sombra, entre o real e a imaginação.
Luiz riu, meio debochado:
— Quero ver de novo a cara dos vizinhos, eu chegando com meu Audi Sportback!
Ele alugou um quarto de hotel na cidade. Lembro dele me contando sobre os dois momentos no quarto: a chegada, antes de visitar o pai, quando o silêncio do quarto parecia um convite à reflexão; e a volta, para pegar as malas e retornar para casa, onde ele respirou aliviado, feliz por ter enfrentado o encontro.
No quarto do pai, Luiz encontrou um homem lúcido, cercado pelos remédios alinhados ao lado da cama e por enfermeiras que o chamavam pelo nome com um respeito quase ritualístico.
O pai olhou para ele e disse, com uma voz cansada, mas firme:
— Veio me ver antes de eu morrer? Que bom! Já tá perto! Você nunca voltou aqui, eu que pedi, né? Você é pior que eu, porque nunca veio pedir desculpas. Mas eu preciso te pedir desculpas e agradecer, porque eu sei que tudo isso aqui — apontando para as enfermeiras e os remédios — foi por sua causa.
Houve um silêncio, carregado de emoção contida, como se naquele quarto o tempo tivesse desacelerado para que pudessem, enfim, se encontrar.
Seu pai perguntou, numa tentativa de quebrar a tensão:
— E você, casou?
Luiz respondeu, com uma risada nervosa que ecoou pelo quarto:
— Você esqueceu que eu sou viado?! Bicha?!
O pai sorriu, meio brincalhão, meio sério:
— Mas agora eu vejo que tem bicha casando. Pensei que você fosse ter família, já que agora pode.
A mãe interrompeu, com a voz cansada:
— Seu pai não tá mais falando coisa com coisa.
Luiz olhou para ela, com um brilho desafiador nos olhos:
— E a senhora? Acha que eu posso me casar?
O silêncio se fez…
A partida do pai veio poucas horas depois. Luiz estava no quarto do hotel, quando uma das enfermeiras telefonou informando do ocorrido…
A notícia da morte chegou como um sussurro, uma dama que atravessa a noite sem pressa. Luiz permaneceu imóvel, como se o tempo tivesse desacelerado naquele instante, permitindo que a dor e a esperança coexistissem.
Entre o cuidado e o distanciamento, entre o amor e a ausência, ele começava a perceber que a vida, mesmo marcada pela perda, ainda podia ser uma dança — imperfeita, sim, mas sua.
O retorno que desperta o viver
Poucos dias depois da morte do pai, Luiz chegou cedo ao meu consultório. Sentou-se devagar, como quem experimenta um novo corpo. O rosto ainda trazia marcas do choro, mas havia algo diferente no olhar — uma espécie de claridade, como quem atravessou uma noite longa e agora reconhece o dia.
— Acho que ainda dá tempo. Tempo de tentar de novo. De viver um amor, talvez. Aquele velho teve a audácia de perguntar se eu tinha casado? Nem amar eu dou conta!
Fez uma pausa, olhou para as próprias mãos, entrelaçando os dedos.
— Eu me coloco em risco o tempo todo! Um dia você me disse que, no fundo, eu espero que alguém me salve. Eu quero mesmo é ser reconhecido.
O silêncio se instalou entre nós, denso e acolhedor. Pensei em Cazuza, naquela voz que atravessa o tempo, e disse apenas:
— O tempo não pára, Luiz.
“Disparo contra o sol
Sou forte, sou por acaso
Minha metralhadora cheia de mágoas.”
Mas, às vezes, a gente pode escolher para onde quer ir…
Ele sorriu, um sorriso pequeno, mas verdadeiro.
— Acho que vou tentar. Nem que seja só para ver o que acontece.
Do lado de fora, a cidade seguia seu curso, indiferente. Mas, ali, por um instante, o tempo parecia suspenso — e Luiz, finalmente, respirava
A “Trilogia da Bênção” é uma série de contos literários que pretende explorar as complexidades da subjetividade humana, especialmente as tensões entre desejo, vulnerabilidade e relações familiares. Cada história acompanha personagens que enfrentam conflitos internos e externos, navegando entre expectativas sociais, familiares e suas próprias buscas por reconhecimento e pertencimento.
Os casos de Mateus, André e Luiz são narrativas que se desenrolam em contextos onde o silêncio e o não-dito têm papel central, revelando as dificuldades e os processos de transformação vividos por cada um. O espaço da escuta psicanalítica — presente na voz do narrador, que acompanha esses trajetos a partir do consultório — da reflexão e do encontro consigo mesmo aparece como elemento importante para essas jornadas.
Mais do que relatos isolados, esses contos formam um conjunto que busca oferecer um olhar sobre as experiências humanas contemporâneas, convidando o leitor a refletir sobre as múltiplas formas de existir e se reinventar diante dos desafios da vida.
Os relatos que compõem “A Trilogia da Bênção” foram elaborados a partir da escuta clínica, mas construídos como ficção literária, de modo a preservar a identidade e a privacidade dos sujeitos que inspiraram essas histórias. Qualquer semelhança com pessoas reais é intencionalmente evitada, respeitando o sigilo e a ética do processo terapêutico.
José Alberto Roza é Psicanalista/Psicólogo Clínico. Doutor em Psicologia pela Universidade de São Paulo. Professor e Pesquisador em Saúde Mental, Gênero e Sexualidade.
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Fonte: https://revistacult.uol.com.br/home/o-caso-luiz/