O que perdemos com os preconceitos?

 

Homofobia é um conceito criado para pensar a repulsa geral às pessoas homossexuais, ou fobia aos homossexuais. Daniel Borrillo, no livro Homofobia, diz que o termo parece pertencer a K. T. Smith, que, em um artigo publicado em 1971, tentou analisar as características de uma personalidade homofóbica. Um ano depois, G. Weinberg teria definido a homofobia como “o temor de estar com um homossexual em um espaço fechado e, no que concerne aos homossexuais, o ódio até a si mesmos”.

Em geral, usamos o conceito de homofobia para descrever qualquer atitude e/ou comportamento de repulsa, medo ou preconceito contra os homossexuais. A homofobia não se restringe apenas às violências físicas, mas também às variadas violências simbólicas. E ela também pode atingir os heterossexuais que, porventura, pareçam aos olhos homofóbicos como homossexuais.

O conceito de homofobia é controverso e, ainda que muitas pessoas defendam o seu uso, em função dele já ter sido incorporado por boa parte da sociedade, ou que o ampliem para além de aspectos de ordem psicológica, como faz Rogério Junqueira, no artigo Homofobia: limites e possibilidades de um conceito em meio a disputas, publicado na revista Bagoas, a ideia de fobia está, queiramos ou não, dentro do campo das patologias. Enquanto isso, sabemos que aprendemos no dia a dia quem deve ser respeitado e quem pode ser injuriado, portanto, não estamos falando de uma patologia em sentido estrito/inato, mas de um problema social/cultural.

Outro problema tem a ver com como o prefixo “homo” é decodificado no Brasil. Os criadores do conceito de homofobia agruparam dois radicais gregos para formar a palavra: “homo” (semelhante) e “fobia” (medo). No entanto, para nós, “homo” significa homossexual e, por isso, o conceito de homofobia fica reduzido a uma identidade, isto é, aos homossexuais masculinos, e invisibiliza a multiplicidade de outros sujeitos e suas identidades. Isso fez surgir novos conceitos, tais como lesbofobia, bifobia, travestifobia, transfobia. Borrillo reconhece esse problema, dizendo que homofobia pode se confundir como gayfobia, mas ainda assim decide usar apenas a noção de homofobia alegando “razões de economia de linguagem”.

Ora, trata-se de um argumento muito questionável, pois sabemos, há muito tempo, em especial nos estudos das sexualidades e dos gêneros, via Michael Foucault e Judith Butler, por exemplo, que a linguagem está carregada de relações de poder e marcada pelas normas que geram preconceitos. E, além disso, esses e tantos outros estudos evidenciam que a linguagem muda com o decorrer do tempo, em especial quando existe uma política para nela interferir.

Heterossexualidade como norma

O conceito de heterossexualidade compulsória começou a aparecer por volta de 1980. Nesse ano, dois textos importantes foram publicados sobre o tema. Um deles é da feminista Adrienne Rich, autora de Heterossexualidade compulsória e existência lésbica. Para Rich, a experiência lésbica é percebida através de uma escala que vai do desviante ao odioso ou até mesmo invisível. Além disso, as mulheres são convencidas de que o casamento e a orientação sexual, voltadas para os homens, são inevitáveis. As mulheres são doutrinadas pela ideologia do romance heterossexual através de contos de fadas, da televisão, do cinema etc., isto é, todos esses mecanismos fazem propagandas coercitivas da heterossexualidade e do casamento como padrão.

Também pensando a heterossexualidade especialmente em relação às lésbicas, Monique Wittig publica O pensamento heterossexual e Não se nasce mulher. Para ela, o que constitui uma mulher é uma relação social específica com um homem, chamada por ela de servidão ou até escravidão, que implica várias obrigações (trabalho doméstico, deveres conjugais e produção ilimitada de filhos) que dariam sustentação à sociedade heterossexual. As lésbicas escapariam dessa relação quando rejeitam ser heterossexuais e, por isso, Wittig conclui: “as lésbicas não são mulheres”. Para ela, a heterossexualidade não é uma orientação sexual, mas um regime político que se baseia na submissão e na apropriação das mulheres. O feminismo, ao não questionar esse regime, diz Wittig, ajuda a consolidá-lo.

A heterossexualidade compulsória consiste na exigência de que todos os sujeitos sejam heterossexuais, isto é, se apresenta como única forma considerada normal de vivência da sexualidade. Essa ordem social/sexual se estrutura através do dualismo heterossexualidade versus homossexualidade, sendo que a heterossexualidade é naturalizada e se torna compulsória. Isso ocorre, por exemplo, quando buscamos as causas da homossexualidade, um fetiche vigente ainda hoje inclusive entre militantes e pesquisadores que se dizem pró-LGBT. Ao tentar identificar o que torna uma pessoa homossexual, colocamos a heterossexualidade como padrão, como um princípio na vida humana, do qual, por algum motivo, alguns se desviam.

Mesmo que não consideremos que a homossexualidade seja anormal ou patológica, cada vez que tentamos achar um momento ou ocasião que a origina, nós naturalizamos a heterossexualidade e ocultamos um dos mecanismos de produção da anormalidade, isto é, a naturalização da sexualidade. Para não incorrer nesse erro conceitual e político, teríamos que substituir a questão de uma causa da sexualidade para problematizar que mecanismos tornam alguns sujeitos aceitáveis, normalizados, coerentes, inteligíveis e outros desajustados, abjetos. Sairíamos de uma busca pela causa para uma problematização dos mecanismos de produção das abjeções.

Com a retirada da homossexualidade da categoria de crime e a sua posterior despatologização, a partir de 1973, a heterossexualidade compulsória perde um pouco de força em alguns países. Isso porque a patologização sustentava a heterossexualidade como única forma sadia de vivenciar a sexualidade. A partir de então, heterossexualidade e homossexualidade são consideradas formas possíveis de vivência da sexualidade, ao menos em tese, em muitos lugares do planeta (mas não em todos). Mesmo que a “ciência” tenha retirado a homossexualidade (e mantido a transexualidade) na lista das doenças, no senso comum as pessoas ainda acreditam que ser normal e sadio é ser hétero. Além disso, algumas concepções “científicas” partem ainda da heterossexualidade como natureza humana e se apoiam no dualismo hétero versus homo.

Já o conceito de heteronormatividade, criado em 1991 por Michael Warner, busca dar conta de uma nova ordem social. Isto é, se antes essa ordem exigia que todos fossem heterossexuais, hoje a ordem sexual exige que todos, heterossexuais ou não, organizem suas vidas conforme o modelo “supostamente coerente” da heterossexualidade.

Enquanto na heterossexualidade compulsória todas as pessoas devem ser heterossexuais para serem consideradas normais, na heteronormatividade todas devem organizar suas vidas conforme o modelo heterossexual, tenham elas práticas sexuais heterossexuais ou não. Com isso entendemos que a heterossexualidade não é apenas uma orientação sexual, mas um modelo político que organiza as nossas vidas.

Se na heterossexualidade compulsória todas as pessoas que não são heterossexuais são consideradas doentes e precisam ser explicadas, estudadas e tratadas, na heteronormatividade elas tornam-se coerentes desde que se identifiquem com a heterossexualidade como modelo, isto é, mantenham a linearidade entre sexo e gênero: as pessoas com genitália masculina devem se comportar como machos, másculos, e as com genitália feminina devem ser femininas, delicadas.

Enquanto a heterossexualidade compulsória se sustenta na crença de que a heterossexualidade é um padrão da natureza, a heteronormatividade advoga que ter um pênis significa ser obrigatoriamente másculo, isto é, o gênero faz parte ou depende da “natureza”; existe uma relação mimética do gênero com a materialidade do corpo.

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