Hanna Polak acredita no poder do cinema documental. “Se algo pode mudar a forma como as pessoas veem o mundo, é esse tipo de narrativa honesta e humana”, ela diz em entrevista à Cult. Seus filmes refletem a crença de que o cinema documental tem o poder de criar algo duradouro e, ao dar voz aos sujeitos representados, mudar uma realidade.
Seu primeiro passo nessa direção se deu com o curta-metragem As crianças de Leningradski, indicado ao Oscar de Melhor Curta-Metragem Documentário. Nele, a diretora conta a história das dezenas de crianças que moram na estação de trem Leningradski, em Moscou. No mesmo momento em que descobriu essa história, Polak conheceu Yula, que morava no maior aterro sanitário da Europa, a menos de 20km de distância do Kremlin. Algo melhor por vir acompanha a história da garota durante 14 anos, em um esforço de construção de um épico composto por muitas camadas, de um retrato da pobreza à violência do governo de Vladimir Putin na Rússia.
A documentarista polonesa está no Brasil para a mostra Mulheres no Cinema do Leste Europeu, que acontece no CineSesc até dia 2 de julho. Com curadoria de Maria Vragova e Luiz Gustavo Carvalho, a programação traz filmes que refletem sobre a história do leste europeu dos séculos 20 e 21, a partir do olhar de diretoras como Kira Muratova, Larisa Shepitko, Márta Mészáros, Natália Meshanínova, Věra Chytilová e Wanda Jakubowska.
A curadora, nascida em Riga, na Letônia, define seu objetivo com a mostra como “criar pontes entre os países que eu conheço, a riqueza deles e a do Brasil”. Sua aposta é na programação de filmes menos conhecidos de diretoras já celebradas pela cinefilia brasileira: “Não queríamos bater na mesma porta mais uma vez”. A inclusão dos filmes de Polak seguem essa direção, refletindo sobre temas comuns à realidade brasileira, como a pobreza extrema.
Em entrevista, Polak conta sobre a influência que o sucesso inusitado na Rússia de uma adaptação estadunidense de Capitães de areia, de Jorge Amado, teve sobre seu primeiro filme. A diretora também traça sua trajetória de formação no cinema do leste europeu, entre parceiros de diretores como Andrei Tarkovski e Krzysztof Kieślowski e reflete sobre as consequências assustadoras das guerras que assolam o mundo contemporâneo, da Ucrânia ao Iraque. O último é tema de seu novo documentário, Anjos do Sinjar, sobre o genocídio da minoria étnica yazidi nas montanhas no noroeste do Iraque.
Como você se sente estando no Brasil para essa mostra?
Esta é a minha primeira vez na América do Sul. É uma grande honra mostrar meu filme para o público brasileiro porque, quando estava fazendo As crianças de Leningradski, um filme brasileiro foi uma grande inspiração para mim: The sandpit generals [A adaptação de Capitães da areia, de Jorge Amado], um filme muito importante na Rússia, especialmente para as crianças em situação de rua. Foram elas que me falaram sobre esse filme.
O que te interessa no documentário e por que você o escolhe em vez da ficção?
Comecei minha carreira em uma escola de atuação teatral, então inicialmente estava voltada para a ficção. Mais tarde, estudei cinematografia com Vadim Yusov, diretor de fotografia de Andrei Tarkovski – o mais importante diretor russo. Mas quando eu estava no teatro, sentia que ele era muito ligado ao momento presente: quando a peça termina, a experiência basicamente desaparece. O cinema, por outro lado, permite criar algo duradouro, que pode ser visto por gerações futuras. Essa ideia sempre me atraiu.
Quando encontrei as crianças em situação de rua nas ruas de Moscou, fiquei profundamente abalada, tomada pela sensação de que eu não podia simplesmente deixar aquela situação continuar. Então peguei uma câmera como ferramenta para contar suas histórias e, com sorte, ajudar a mudar a realidade que elas enfrentavam. Foi assim que acabei migrando para o cinema documental: para falar sobre aquilo em que acredito.
Não faço filmes comerciais. Na maior parte do tempo, trabalho em filmes que me comovem, sobre temas que considero essenciais. É uma escolha difícil, porque meu coração ainda bate forte pelo cinema narrativo. Dito isso, se posso usar o cinema para dar voz à dor das pessoas, isso me motiva. Depois do meu primeiro documentário, não imaginava que faria outro. Mas, antes que eu percebesse, já estava filmando.
Você iniciou sua carreira no cinema com o curta-metragem documental As crianças de Leningradski. O que te levou àquela história das crianças?
Estava passando pela estação de trem quando vi algumas crianças pedindo comida ou dinheiro. Trouxe algo para elas comerem e, conversando, elas me convidaram a voltar naquela noite, dizendo que mais delas estariam lá. Quando voltei, havia setenta crianças ou mais na estação. Elas correram para mim, me abraçaram e começaram a conversar. Quando cheguei em casa naquela noite, com o coração partido, comecei a organizar meus amigos. Passamos a levar comida e roupas para elas. Tentávamos tirá-las das ruas e levá-las para orfanatos. Algumas até ficaram no apartamento que eu dividia com amigos. Mas eu continuava pensando que minha ajuda era tão pequena. Só conseguia ajudar algumas crianças, enquanto milhares viviam nas ruas. Então decidi fazer um filme.
Mesmo depois do filme, continuei trabalhando com as crianças, envolvida com um grupo de voluntários, levando comida, organizando abrigo. Fui ao México, Índia, África do Sul, Zimbábue e outros lugares tentando defender os direitos das crianças e conectar diferentes organizações para que compartilhassem recursos, ideias e soluções. Assim, além de fazer um filme, fizemos muito trabalho com foco na população em situação de rua e nos mais vulneráveis.
A recusa em usar narração em off é um marco dos seus documentários. O que motiva essa escolha?
Eu adoro o cinema direto, cinéma vérité. O que eu amo nessa abordagem é o fato da realidade ser tão poderosa que você não precisa inventar nada. Não é necessário “dirigir” no sentido tradicional. Se você for paciente e estiver presente com a câmera, a realidade se revela sozinha. Esse é o tipo de cinema em que acredito. Não é fácil, especialmente para o público de televisão, acostumado a narração e explicação constante. Mas acho que o público é inteligente. Quero dar espaço para que tirem suas próprias conclusões.
Meus filmes não são sobre mim – são sobre os personagens. Mas, ao mesmo tempo, não concordo com a ideia de que o documentarista deva ser uma “mosca na parede”; apenas um observador. Nós somos mais do que isso: formamos relações. Eu rio com eles, compartilho momentos – eles se tornam meus amigos, pessoas importantes em minha vida.
Uma das partes mais difíceis do documentário é encontrar a história. Você pode começar com um clichê, mas o verdadeiro cinema nasce quando você vai fundo. Um colega me contou que no escritório de Krzysztof Kieślowski a luz estava sempre acesa até muito tarde da noite. Ele começava onde os outros terminavam. Enquanto os outros estavam satisfeitos em entregar um corte, ele continuava buscando novos significados, a essência mais profunda da história. Essa abordagem me inspira muito.
Decisões criativas nascem da busca pela melhor forma de contar uma história. No documentário, isso é especialmente difícil, porque a vida é imprevisível. Nem sempre você sabe o que está filmando ou qual história vai surgir. Em algum momento, você precisa encontrá-la. É como montar um quebra-cabeça gigantesco sem a imagem-guia na caixa. No documentário, você só tem as peças e precisa descobrir qual é a imagem. Quando se filma por anos, acaba com uma quantidade enorme de material. A verdadeira criatividade está nas decisões que você toma para moldar tudo isso em uma história coerente.
Junto à história das crianças na estação de trem, você encontrou a história de Yula, que você acompanhou por 14 anos. Deve ter sido um desafio muito grande juntar as imagens para formar o quebra-cabeça de Algo melhor por vir
Essa é a parte mais preciosa para mim, porque sinto que esse filme é uma espécie de épico composto por muitas camadas. Não é apenas uma linha narrativa. Existe Yula, mas também o lixão onde ela vive, o contexto político de Putin e a cultura na qual está inserida. Construir um filme assim é como tecer uma tapeçaria.
Eu trabalho com coleções de materiais agrupados por significado. Seleciono o material mais forte de cada grupo e volto várias vezes, buscando fragmentos. Eu exploro o material até ter certeza de que usei tudo o que estava disponível para contar a história. Mesmo assim, seis meses depois do lançamento, é possível que eu acorde com uma ideia brilhante, mas já será tarde demais.
Volto para sua primeira pergunta: se você olhar para o meu último filme, Anjos de Sinjar, vai perceber que esses filmes realmente se aproximam da ficção em termos de estrutura e impacto. Eles têm a forma e o ritmo do cinema narrativo, porque a maneira como construímos a história é muito intencional.
A política na Rússia mudou muito desde seu primeiro filme lá. Como você vê o contexto político atual na Rússia, com Putin e a guerra contra a Ucrânia? Fazer um filme sobre essa situação te interessa?
Sempre fui crítica ferrenha a Putin, e esta não é a primeira guerra em que ele se envolve. Quando filmei no Iraque, também estive muito próxima da guerra. Não tenho dúvidas: a guerra é um negócio. Existem interesses poderosos do complexo militar-industrial por trás disso. Sou completamente contra a guerra e os sistemas políticos que a permitem continuar.
Sou contra essa guerra horrível na Rússia, a matança, a destruição, a perda sem sentido de vidas. Jovens de ambos os lados estão sendo enviados para o matadouro. No mundo de hoje, guerras assim não podem ser vencidas. Nenhum número de vidas humanas pode resistir às armas avançadas de hoje. Esse tipo de guerra só pode ser parado pela vontade política.
Mas isso é incrivelmente difícil, especialmente na Rússia. Se você disser o que eu estou dizendo agora, pode ser preso, espancado, até morto. Existem grupos de interesse poderosos que lucram com essa violência, e farão qualquer coisa para calar a dissidência. As pessoas perguntam “Por que eles não protestam?” – mas tente protestar, e você acabará na prisão. Uma pessoa sozinha não pode fazer muito.
A verdade é que o poder está com o povo. Mas a maioria de nós se sente impotente. É por isso que devemos começar a falar, a ouvir, a nos abrir, a acreditar uns nos outros novamente. Devemos começar a tratar uns aos outros com respeito mútuo. Assim podemos começar um diálogo real – e só assim a mudança verdadeira é possível.
Em seu filme mais recente, você muda o cenário para o Iraque em Anjos do Sinjar. O que te levou a essa história e como ela se relaciona com seus trabalhos anteriores?
É uma história muito importante porque mostra o horror do genocídio e da guerra. Eu vi isso com meus próprios olhos e, ainda hoje, quando falo sobre isso, me comovo profundamente.
Não há nada que destrua a vida das pessoas, suas casas, suas famílias, seus valores, mais do que a guerra. Ainda choro ao ver algumas das imagens que Hanifa me mostrou. Crianças pequenas colocadas em situações horríveis, acabando em covas coletivas.
Nada é mais destrutivo do que a guerra. Devemos fazer tudo para detê-la. Por isso espero que esse filme seja entendido como anti-guerra. Claro, quando você é atacado, faz tudo que pode para proteger os seus. Mas não vamos fingir que é aí que a guerra começa ou termina. A guerra é política. É dinheiro. É o complexo militar-industrial. É uma indústria – e enquanto essa indústria continuar funcionando, continuaremos morrendo pelas chamadas “boas” causas que a mídia e os políticos nos alimentam.
O documentário tem esse poder?
Eu queria poder fazer mais. Poder salvar mais vidas. Ajudar mais pessoas. Mas também sinto-me privilegiada. As pessoas que filmo me permitem entrar em suas vidas, me oferecem sua amizade, confiam em mim suas histórias, suas dores, seu amor, sua bondade. Isso é um presente extraordinário.
Espero que este não seja meu último projeto, que a vida ainda encontre um uso para meu trabalho antes que eu não possa mais. Eu acredito no poder do cinema documental. Se algo pode mudar a forma como as pessoas veem o mundo, é esse tipo de narrativa honesta, humana.
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Fonte: https://revistacult.uol.com.br/home/quero-usar-o-cinema-para-dar-voz-dor-das-pessoas-diz-hanna-polak/