Não se aprende a ser travesti em casa.
Foi na prostituição que aprendi a não chorar tão fácil, nesse espaço tratado como um “não lugar”, mas que me acolheu quando a igreja, a escola, e o Estado me lembravam todos os dias que minha existência era uma espécie de crime, um crime que uma hora ou outra acabaria me levando à morte. Foi lá que inventei o meu direito de existir.
A primeira expressão em bajubá que aprendi foi “equê de amapôa”, da boca da tia Zezé, muito antes de me entender travesti. É o começo da minha história com a língua, que fui aprimorando primeiro no terreiro de umbanda da casa da mãe Lenita e depois com as musas do Reduto, ponto de prostituição do centro de Belém que impactou bem mais na minha formação do que a graduação em Letras. Com algumas das musas fiz amizade, com outras inimizade, mas com todas fui aprendendo a ser quem eu sou, essa travesti que faz a neca parecer laiala quando aqüendada, que sabe botar guanto com a endaca se a neca do clisse ainda não tá didê e, sobretudo, que não tem medo de lixo que, depois que diza a cláudia, aponta o ferro pra mônsime e manda ela vazar do corre-corre por ele não querer soltar o aqüé.
Importante dizer que o bajubá é uma língua das bichas, mas não é qualquer bicha que sabe bajubá. A língua não está no sangue, nem se aprende no Duolingo ou em cursinho de idiomas — fluentes são só as que realmente precisam dessa ferramenta, as que ocupam as ruas e inventaram seu direito de existir a partir do lajô do pistão. As demais podem até saber uma palavrinha ou outra, geralmente as mais óbvias, e é comum que só saibam as que nem são mais usadas no pistão. Querem um exemplo? Quem fala “padê” hoje em dia é só gay ou travesti que não tem vivência da prostituição, porque na rua já inventamos mil outras expressões para isso.
Quando criança, as bichas chegavam na casa dos meus avós para se produzirem. Era um lugar seguro e minha avó protegia as moninhas de seus familiares, que queriam agredi-las ou arrancar seus picumãs, seus oxós de amapoa. Chegou ao ponto de o antigo prefeito da cidadezinha onde cresci (Cachoeira do Arari, na Ilha do Marajó/PA) proibir seu filho de ir à nossa casa brincar com minha sobrinha, pois, segundo ele, lá era casa de viados. Eu perguntava para minha mãe porque tia Zezé falava daquele jeito com seus amigos, e mamãe dizia que eram gírias gays, que só quem era da irmandade sabia. O que diabos era irmandade eu não fazia ideia, mas gay eu tinha uma noção do que era. Só que a titia era amapoa como a minha mãe, casada, com filhos, então porque ela também agia e falava a língua dos gays?
Por esse motivo prefiro falar que o bajubá é língua de bichas e putas, não exclusivamente de travestis. Elas falam fluentemente, mas há uma gama imensa de pessoas que aprende a falar dessa forma por ter relações cotidianas com as musas, em especial quem trabalha na prostituição da rua. É o caso da minha tia Zezé, uma amapoa dundum que até nos dias de hoje, na terceira idade, diz que ainda bate portas quando dá na telha. Quem vive a realidade das calçadas inevitavelmente se deixa levar pelo bajubá e junto desenvolve um dos elementos centrais da cultura travesti: o deboche. Era uma das coisas que eu mais admirava na minha tia. Certa vez ela me contou que saiu com um cafuçu bens e, quando ele acariciou seu rosto, ela pensou: “a mãozinha do ocó era tão delicada que o prego que entrou na mão de jesus entortava tentando furar aquela pele”. Outra frase típica dela e que bem poderia ser bajubá era: “esse fresco tá igual o cigarro Arizona hoje”, fazendo referencia a uma marca de cigarros que não tinha filtros. Suas tiradas eram acompanhadas não só do esperado cacacá, como também do “bate-rebate”, ação que consiste em duas pessoas levantarem as mãos e as baterem no ar. É um dos gestos mais comuns no meio travesti, quase como um cumprimento ou um sinal de apoio pontuando o andamento das nossas conversas.
O bajubá é uma linguagem oral e se modifica rapidamente, o que significa que, enquanto muita coisa se cria, outras tantas se perdem. Se, na época da minha tia, o cigarro Arizona era uma forma de dizer que a bicha não tinha papas na língua, hoje a expressão já não cumpre o seu objetivo. Se a língua existe como um dispositivo de segurança para quem desce para o pistão e convive com os perigos que aí existem, não podemos correr o risco de deixar que essas expressões se tornem conhecidas. Ou seja, o bajubá que está dicionarizado ou em glossários da internet não é a parte que efetivamente circula nas ruas. É um bajubá velho, por assim dizer. A constante metamorfose que a língua sofre faz com que só quem está ali presente no dia a dia consiga estar a par dos seus atuais desdobramentos.
Travestis sabem usar muito bem esse recurso e um exemplo disso aconteceu nos anos 2000. Por volta dessa época, cantores de axé, no Carnaval, começaram a chamar bichas e travestis para subirem nos trios e ensinarem o “bate, rebate, finge que bate, congela”, enquanto o famoso requebrava e fazia trejeitos caricatos, algo que era considerado engraçado na época. Bom, com o tempo, pela fama e ridicularização que a cisgeneridade produziu, a prática acabou sendo abandonada no nosso meio, reduzindo-se ao simples “bate” com que as monas agora se cumprimentam. Outro exemplo que sempre cito nas aulas que tenho dado sobre o bajubá é que, hoje em dia, a palavra “padê” quem usa são homens gays cis — como ela se popularizou, não serve mais para uma linguagem cifrada, daí já possuirmos todo um arsenal de expressões para designar o brilho. Como quando uma amiga me disse: “Qüenda a menina do cabelo amarrado, lá vem os alibans”. Foi a primeira vez que ouvi a expressão mas entendi perfeitamente a que ela se referia. Até hoje não sei se foi criação da minha amiga ou se já era algo que circulava entre as travas, mas o episódio ilustra a maneira como expressões vão surgindo. É quase como se houvesse uma competição para irmos inventando a todo tempo formas novas de dizer as coisas importantes e, nessa disputa, vamos dando a nossa contribuição para que a língua da rua permaneça secreta.
No entanto, embora a gente fale muito do papel do bajubá na segurança da comunidade, é importante saber que ela tem propósitos menos nobres também. Falar de ocós sem eles catarem é um dos pontos mais divertidos. Além disso, as misses ainda adoram explorar o potencial da língua para o deboche. Na minha primeira vez no pistão, vi uma travesti chamando a outra de “Victor Belfort de apeti” e quase rolou um atraque babado depois. Daí, na semana seguinte, uma livrou a outra de uma clisse doceira e ficaram béstis. E tou falando isso como se fosse uma grande brincadeira, mas dói, viado. Não tem ninguém melhor que travesti na arte de ofender, de humilhar. As bonitas são babadeiras na xoxação, sabem onde o calo aperta e não tem dedos na hora de enfiar o dedo nas feridas.
Só que, por mais sádicas que elas saibam ser, eu vejo um elemento de cuidado por trás disso. É como se essa tiração entre nós fosse uma espécie de exercício, uma preparação para enfrentar as porradas da vida. Lá fora o mundo vai tentar nos engolir, então é como se as deusas ficassem treinando umas com as outras para, na hora H, a gente não deitar pros penosos. Posso estar romantizando a brutalidade das ruas, mas eu prefiro mil vezes o que a gente faz entre nós do que a forma como a vida nos trata. No pistão, são pessoas iguais a mim, com as mesmas dores, mas também com os mesmos sonhos. A própria faculdade de Letras, esse espaço tão reverenciado, eu tive que abandonar por um ano, porque de travesti só tinha eu ali e as risadas e apelidos maldosos me lembravam a todo momento que somente na esquina a minha presença não era estranha, incômoda. E, embora a esquina também fosse o meu lugar, por que raios eu não poderia estar nos dois espaços ao mesmo tempo? Tive o apoio da minha mãe para conseguir voltar e da minha professora de linguística Aline Rodrigues, que defendeu meu direito de estar numa sala de aula, duas mulheres que servem de inspiração para a pessoa que eu quero ser. Mas as aulinhas básicas de xoxação que recebi nesse um ano longe da faculdade foram imprescindíveis para eu aprender a tratar ocós e amapoas como eles merecem.
A rua foi o lugar onde eu pude desenvolver a minha autoconfiança e aprender a ser travesti. Não fosse esse espaço, eu ainda estaria sendo pisada pelas pessoas e deixando elas me tratarem como se eu fosse um nada. Cresci me sentindo o patinho feio, sofrendo bullying na escola, indigna de apreço e afeto, e foi no pistão que tudo começou a mudar. Um carro que para e baixa o vidro. Dentro, um homem maduro, simpático, diz que eu sou uma moça bonita, pergunta meu nome. Ninguém se interessava em saber o meu nome até aquele dia, ninguém nunca me olhava nos olhos, via beleza em mim, mas aquele cliente sim e ainda quis saber quanto eu cobraria para sair com ele. E ainda era um ocó bens, ótimo candidato pra um vício. Meus primeiros pegês tinham sido só umas conas uó, não vou mentir aqui, lixos que eu só faria por aqüé e olhe lá, mas esse era o contrário.
Eu perguntava para as outras bichas que horas viria o belíssimo e elas respondiam que a rua é Tele Sena, um dia ela é mãe, no outro é madrasta. Então voce pode atender um cli lindíssimo, mas é muito mais comum o satanás. E quem dera esse fosse o pior dos nossos problemas e não a elza ou os doces que a musa pode levar no pistão. E o engraçado é que, nesse momento, eu não sabia o meu CPF de cor, mas conseguia decorar a placa de um caminhoneiro que fazia a podre com as travestis. Prioridades, né? E são nesses eventos que a necessidade de se proteger espiritualmente vai ganhando força.
— Ei fresco, já acendeu a vela da tua puta?
É assim que a gente se refere à dona Pombagira na Umbanda, por exemplo. Na minha vivência com o terreiro, descobri que tenho uma Rosinha Malandra que, assim como eu, já bateu pencas e perrencas. Ela é quem me protege quando saio pra trabalhar. O ritual do axé é obrigatório: acender a vela, colocar o otim e o oxanã dela e fazer os pedidos. O mais importante é para ela me livrar das maldades da rua mas sempre aproveito pra pedir uma noite Jovem Pan (referência à propaganda de uma música atrás da outra, sem intervalo). Se saem duas travestis pra trabalhar, na verdade saem quatro de casa, porque cada uma leva sua Pombagira à frente, para protegê-la. É natural do ser humano se apegar a algo em que possa acreditar, por isso a travesti da rua tem esse vínculo com entidades femininas da umbanda e não com uma virgem branca de terço na mão, coberta com véu de seda. Como é que essa figura vai me proteger? Ela não sobreviveria a uma noite no pistão.
Um outro aspecto do bajubá é que ele conta, da sua maneira irreverente, a história do Brasil pelas expressões que vão se modificando através do tempo. São histórias e mais histórias por trás de cada palavra e é lindo ouvir travestis mais velhas apresentando suas versões (muitas vezes fantasiosas) de como os termos foram surgindo. Quem foi a Elza que deu origem à expressão “dar a elza”? Como a única Elza famosa atualmente é a Elza Soares, é comum relacionarem com ela, mas travestis mais velhas, contemporâneas da criação da expressão, são unânimes em questionar essa origem e apontar outras Elzas como as verdadeiras origens.
Quando a Amara Moira me convidou pra construir um curso sobre o bajubá, eu fiquei receosa. Achei que não ia ter público, pois em vários momentos da minha vida eu tinha vergonha de falar bajubá longe das ruas. Ainda hoje é comum, mesmo dentro da comunidade LGBT, tratarem o bajubá como gíria de marginais, gíria de travestis perigosas, mas com o sucesso dos cursos e o carinho das pessoas, eu fui entendendo a potência e importância dessa linguagem, dessa forma de comunicação. Isso tem me impulsionado a escrever textos radicais em bajubá, textos que trazem a minha visão de mundo e que não tentam se fazer compreensíveis para o público leigo (já tem editoras babadeiras interessadas nesse material, aliás). O mais bonito é ver amigas minhas se inspirando em mim e começando a imaginar suas histórias no papel. É tão comum que a gente abandone o bajubá quando ascende socialmente, na tentativa de higienizar nossa imagem e torná-la mais palatável para a branquitude e cisgeneridade, mas parece que chegou a hora de fazermos esse resgate histórico das nossas vivências, colocando o bajubá no centro das atenções das artes, da música, da literatura.
Já não estou mais tão presente na rua como antes, mas sempre apareço por lá para tricotar com as musas, ouvir os bafões e, lógico, atender umas maris. Esse trabalho que venho realizando eu dedico a elas, minhas irmãs de batalha, tanto as que estão aqui para ver quanto as que já estão no oló. Termino o texto com uma frase que ouvi de uma mana nos meus bordejos pela vida:
— Já que o futuro é a morte, vamos barbarizar.
Ela diz e entra no corre-corre do cli, que some nas esquinas dessa megalópole que insiste em tentar nos apagar. Coitada dessa cidade… imagina a catástrofe o dia que as travas não estiverem mais aqui para manter de pé esses casamentos capengas que vocês inventam.
Axé!
Isabella Miranda é uma travesti marajoara, escritora, formada em Letras e professora de bajubá.
(function(d, s, id) {
var js, fjs = d.getElementsByTagName(s)[0];
if (d.getElementById(id)) return;
js = d.createElement(s); js.id = id;
js.src = “//connect.facebook.net/pt_BR/sdk.js#xfbml=1&version=v2.7&appId=1200972863333578”;
fjs.parentNode.insertBefore(js, fjs);
}(document, ‘script’, ‘facebook-jssdk’));
Fonte: https://revistacult.uol.com.br/home/tudo-o-que-precisamos-saber-sobre-o-bajuba-lingua-das-travestis/