Os sinais que vêm do Paraná

A cena me soou um tanto surrealista. Aquela multidão invadindo a sede de um Parlamento. Pedras contra as vidraças, corpo a corpo com a segurança, invasão do plenário. Foi no Paraná. O projeto em votação era o “Parceiro da Escola”, cujo foco é a contratação de empresas especializadas para a administração das escolas. O programa gerou algum debate Brasil afora. De uma “especialista”, leio que a “privatização não é a solução”, citando o modelo das escolas charter, nos Estados Unidos, para sugerir que aquilo não daria certo. Tudo errado. Não se trata de “privatização”, mas de um contrato de gerenciamento operacional; é inteiramente diferente das escolas charter, cuja essência é a contratação de uma instituição escolar, com ampla autonomia; e o dar certo ou errado depende de uma infinidade de fatores, que vão muito além da mudança no modelo de gestão. O que impressiona é a precariedade do debate. No próprio Paraná, há um dos maiores exemplos de gestão de patrimônio público em parceria com o setor privado, que é o Parque das Cataratas do Iguaçu. E em Belo Horizonte, há mais de uma década funciona uma bem-sucedida parceria na gestão operacional de uma ampla rede de escolas infantis. Tudo isso sabido. Mas não. Como em um transe coletivo, lá estavam aquelas pessoas, as de sempre, tentando impedir que um rito da democracia se realizasse. Não foram bem-sucedidas, mas sua atitude nos ajuda a entender por que há tanto tempo andamos parados no tempo, no país, no universo da educação pública.

Os dados sobre a nossa educação são conhecidos. No teste do Pisa, da OCDE, em matemática, com alunos de 15 anos, nossos estudantes de escolas privadas alcançam 456 pontos, nota parecida com a de Israel. Nossos alunos de escolas estaduais e municipais 370 ou 320, respectivamente. Nota similar à da Albânia ou do Marrocos. É isso que somos. Temos uma Belíndia em nossa educação, numa homenagem ao grande professor Bacha, mesmo que o nome hoje seria outro. Enquanto isso, fazemos de conta que nossa “educação está em crise”. Truque. É a oferta estatal da educação que vive numa lona e silenciosa estagnação. Diante desse quadro, o que fazemos? Apedrejamos, não raro com alguma histeria, qualquer alternativa de mudança. Em princípio, nos sentimos confortáveis em um debate, em regra, inócuo sobre o “modelo” a ser adotado no ensino público. De um modo mais rasteiro, queremos saber se ele será “público”, palavra que equivale a “estatal”, em nosso léxico, ou privado. O debate é ineficaz por uma simples razão: há muitos modelos que podem funcionar, a depender do contexto e da forma de regulamentação. E é exatamente isso que a experiência internacional no tema demonstra. A Holanda possui perto de 75% de seus alunos em escolas privadas, com direto de escolha e forte subsídio público. E é o segundo país da Europa no Pisa. Já a Polônia, com um resultado muito próximo, tem um sistema basicamente estatal. Haveria alguma causalidade, aí? A mesma confusão se faz em relação ao modelo americano das escolas charter. O modelo é similar ao de nossas organizações sociais. O governo firma contratos com organizações privadas especializadas para gerenciar as escolas. A Universidade de Stanford apresentou uma ampla pesquisa, em 31 estados americanos, sobre o desempenho do sistema. No geral, o ganho dessas escolas corresponde a seis dias de aprendizagem a mais em um período de 180 dias letivos. É pouca coisa. Mas com um detalhe: 36% das escolas têm uma performance melhor do que as escolas públicas tradicionais, ante 25% com desempenho pior e 39% indiferente.

“Um ponto decisivo: o governo vai contratar boas empresas?”

A pergunta óbvia: o que faz com que algumas escolas ou distritos apresentem resultados melhores? Os dados mostram que as redes mais estruturadas, isto é, organizações que gerenciam dezenas ou centenas de escolas, como a Kipp ou a Sussex Academy, têm rendimento superior ao das escolas menores e isoladas. Isso indica que a escala importa e que um modelo fragmentado de contratos de gestão com pequenas instituições talvez não fosse a melhor ideia. Os dados também mostram que escolas urbanas têm desempenho melhor e que a competição pelos alunos é positiva para o sistema. Daria para ir longe aqui. Não é o caso. O foco é apenas mostrar que o debate sobre como melhorar a educação é mais complicado do que simples oposição entre esse ou aquele modelo, seja estatal, seja privado. O fator que parece surgir como definidor de bons sistemas educacionais diz respeito a uma palavra sem uma tradução clara em português, que é accountability. Significa mais ou menos o seguinte: os gestores das escolas serão responsabilizados pelos resultados das escolas? Serão premiados, se tudo andar bem, ou punidos, eventualmente perdendo seu contrato, na hipótese contrária? No setor privado, não é exatamente assim que funciona? E os pais, terão direito a escolher a escola dos filhos e, se não estiverem satisfeitos, exercer o direito de ir adiante, como fazem as famílias de maior renda? A pergunta é bastante clara, aqui: podemos esperar bons resultados em um sistema com incentivos mal desenhados? Ou basicamente nenhum incentivo, como em regra é o nosso modelo?

Vem exatamente aí o mérito da experiência do Paraná. Um modelo de cogestão escolar. O Estado busca empresas especializadas, mantém a parte pedagógica sob seu controle direto, e delega ao parceiro privado a gestão operacional da escola. O principal ganho é permitir que o diretor da escola, que é do Estado, se dedique essencialmente à função educacional, ao invés de “apagar incêndios”, preocupado com a manutenção do prédio e os infinitos problema de gestão do dia a dia. Quanto à empresa contratada, há metas, avaliação de resultados e remuneração variável. E um avaliador independente para verificar se os objetivos estão sendo atingidos. Importante: a comunidade escolar poderá dizer se deseja ou não aderir ao novo modelo, e a empresa poderá contratar professores, via CLT, para completar o quadro, o que representa uma inovação importante. O modelo tem tudo para dar certo. E o melhor que a comunidade educacional do Paraná poderia fazer é ajudar e trabalhar para que isso aconteça. Os pontos decisivos são os de sempre: o governo vai contratar boas empresas? Haverá um bom entrosamento entre professores efetivos e celetistas nas escolas? Os contratos serão bem desenhados, com um bom sistema de monitoramento? Pode-se discutir cada um desses detalhes, mas o fato é que a proposta caminha na direção de devolver algum accoun­ta­bi­li­ty ao sistema educacional.

O que me intriga, nisso tudo, é de onde surge nosso extremo conservadorismo quando tratamos do tema educacional. Na área de parques, hospitais, aeroportos, infraestrutura e tantas outras já andamos muito longe, com os modelos de PPPs, organizações sociais. Na educação, nos aferramos não só a um modelo de resultados reconhecidamente frágeis, mas ao monopólio desse mesmo modelo. Não acho que isso atenda aos interesses dos estudantes, em especial pertencentes às famílias de menor renda, que precisam do sistema público. Portanto, é preciso mudar. Por isso vejo com simpatia os sinais que vêm do Paraná. No fundo, se trata ainda de uma mudança muito tímida. Mas na direção correta. O que, em um país ainda tão atrasado como o Brasil, na educação pública, não é pouca coisa.

Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper

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Publicado em VEJA de 28 de junho de 2024, edição nº 2899

Fonte: https://veja.abril.com.br/coluna/fernando-schuler/os-sinais-que-vem-do-parana/