Memórias de lazer nos bairros do Guamá, Condor e Jurunas

As práticas de lazer adotadas pela população em diferentes contextos no cenário das cidades guardam recortes da história social e cultural de uma época. Na Belém dos anos 1940 a 1960, os bairros do Guamá, Condor e Jurunas se destacavam pela presença marcante de espaços de lazer e casas de shows que recebiam não apenas os moradores desta margem do Rio Guamá, mas também de outros bairros da cidade.

As festas realizadas na região naquele período tomavam os jornais da época e, mais recentemente, também foram tema de uma pesquisa desenvolvida na Universidade Federal do Pará (UFPA), dentro do Programa de Pós-Graduação em História Social da Amazônia.

Autor da tese de doutorado intitulada “Pela margem da cidade: lazer, sociabilidades e controle social no subúrbio belenense em meados do século XX”, o historiador Elielton Benedito Castro Gomes lembra que, naquele período, Belém vivenciou uma expansão dos espaços de lazer na margem da cidade, à beira do Rio Guamá.

E, além de conseguir identificar as questões que estavam ligadas à essa expansão, a sua pesquisa também buscou compreender os conflitos, as aproximações, os encontros e desencontros que eram vivenciados por esses sujeitos nessa parcela da cidade. “Nesse meados de século XX, nós percebemos uma proliferação dos espaços de lazer e sociabilidade. Então, nós vamos ver crescer muito a quantidade desses espaços no Guamá, no Jurunas e principalmente aqui no bairro da Condor”, contextualiza.

“Esses espaços vão ser importantíssimos na vida desses sujeitos que já viviam aqui ou que chegavam a Belém vindos das ilhas próximas ou de municípios próximos, e até mesmo de fora do Estado, principalmente dos estados do Maranhão e do Amazonas”.

Por meio da documentação levantada – o que incluiu a análise de nove jornais da época – e das informações coletadas com entrevistados que viveram aquele período, o historiador conseguiu compreender um pouco mais as questões que envolviam as trocas sociais desses sujeitos naqueles espaços. As trocas relacionadas ao trabalho, as trocas econômicas, mas principalmente as trocas que envolviam as festas, o lazer, os momentos de fuga da realidade do trabalho e da rotina diária.

“Essa pesquisa consegue mostrar um pouco de como aqueles sujeitos se organizavam, como aqueles sujeitos viviam, mesmo frente aos problemas que eles encontravam diariamente no seu caminho, tendo que ir trabalhar muitas vezes a pé por falta de ônibus, tendo que viver diante do medo do olhar do outro sobre aquele sujeito marginalizado. Então, a gente consegue identificar um pouco dessas questões que envolvem as práticas de lazer, sociabilidade e segurança pública nessa área de Belém”.

Bairros e identidades culturais em Belém

Elielton considera que, ainda que as fronteiras físicas entre os bairros fossem bem delimitadas, as fronteiras culturais entre eles eram bem diluídas. Era comum que os sujeitos que frequentavam essas festas e espaços de lazer transitassem pelos três bairros em uma única noite. Mas, apesar disso, é possível identificar algumas particularidades acerca das manifestações realizadas em cada bairro e, sobretudo, a partir da forma como esses bairros eram retratados pela imprensa da época.

“Nós vamos perceber, naquele contexto, o bairro da Condor apontado enquanto o bairro da boemia. Geralmente os sujeitos que iam para as festas de clubes no centro da cidade, quando chegava certa hora da madrugada e esses clubes encerravam suas programações, esses sujeitos se direcionavam para a Condor em busca desses prazeres, não só sociais, como também sexuais”, aponta o doutor em história social da Amazônia.

“Então, vai se difundindo aquele contexto, para o bairro da Condor, de além de ser um bairro da boêmia em si, ser também um bairro da prostituição, o que vai ser representado na imprensa de um modo negativo e que se reflete na vida dos sujeitos que viviam aqui. Muitas vezes, essas mulheres eram trabalhadoras portuárias, eram pessoas que saíam daqui e se direcionavam para o centro da cidade para trabalhar em casas de família, mas cujo bairro onde moravam era estereotipado”.

Naquele contexto, o pesquisador aponta que a imprensa assumia uma posição de mediadora cultural, mesmo que indiretamente. O que se dizia na imprensa influenciava muito a concepção das pessoas acerca da sociedade belenense. Então, o olhar do outro sobre os sujeitos que viviam no bairro acabava sendo um olhar de preconceito. “Eu escutava muito nas minhas entrevistas, sobretudo as mulheres falando acerca disso. Que elas tinham medo de andar no bairro da Condor porque se falava que era um bairro violento, que era um bairro de prostituição, embora vivessem no bairro e nunca tivessem visto mulheres nuas na frente dos estabelecimentos”.

Quando se analisa o bairro do Jurunas, Elielton aponta que a realidade não era muito distante, porém, o Jurunas tinha uma característica própria. É nele que surge, por exemplo, a primeira escola de samba de Belém, na década de 30, o Rancho Não Posso me Amofiná. “Então, o Jurunas vai estar muito ligado a essa prática sociocultural do samba, dos grupos de Bumbá, grupos de Pai do Campo, grupos de pássaros juninos e que também estão associados a esses espaços de lazer, sobretudo no mês de junho”.

Clube São Domingos

Mosaico cultural dos bairros

Já no Guamá se observa outra característica. O Guamá era apontado pela imprensa da época também como o bairro do batuque, um batuque associado não apenas ao samba, mas principalmente às religiões de matriz africana. “O Babaçuê, que depois é visto com o Tambor de Mina, era muito forte nessa margem da cidade, mas que estava também atrelado aos aspectos socioculturais desses sujeitos porque realizavam suas festas nas ruas, principalmente na Pedreirinha, que é uma rua no bairro do Guamá que, hoje, tem grande visibilidade no âmbito sociocultural. Ali se encontra um terreiro, um dos mais antigos, que é o Terreiro de Mina Dois Irmãos; se encontra também uma escola de samba, que é a Bole Bole, tem um boi de bumbá dentro daquele espaço. Então é um bairro que vai estar muito associado a esse aspecto do batuque”.

Em comum, os três bairros compartilhavam a forma como eram retratados na imprensa no que se refere à segurança pública, apontados como espaços muito violentos, outro aspecto pesquisado na tese. Esse imaginário criado acerca desses bairros, e que era muito retratado na imprensa, acabava influenciando as ações da segurança pública no território, ainda que ocorrências também fossem registradas no centro da cidade.

Frente aos problemas que, inegavelmente existiam, sejam de insegurança ou de falta de infraestrutura, saneamento básico, acesso ao transporte público, o que os relatos coletados pelo pesquisador apontam é que, mais do que diversão, essas práticas de lazer e sociabilidade acabavam se configurando como um movimento de resistência.

“Eles diziam o quanto eles eram felizes e o quanto esses encontros foram importantíssimos dentro desses espaços de lazer e sociabilidade para a construção da felicidade desses sujeitos”, lembra Elielton.

Imperial Esporte Clube

Para saber mais

Alguns espaços de lazer seguem vivos na região

  • Embora as transformações vivenciadas na margem da cidade ao longo dos anos tenham modificado consideravelmente o cenário, alguns dos espaços de lazer que já eram emblemáticos entre as décadas de 1940 e 1960 continuam vivos e em funcionamento até hoje.
  • O historiador Elielton Gomes explica que, na época, a conexão de Belém com o Rio Guamá era muito relevante. Era através do rio que chegavam e saíam não apenas pessoas, mas também pensamentos diferentes, questões políticas e produtos diversos, clandestinos ou não. “Isso vai ser importante para que, sobretudo nesta margem da cidade, se estabeleça um encontro plural, diversificado e que vai contribuir também para formação desses espaços de lazer e sociabilidade na margem de Belém”, considera.
  • “A gente vai ver isso muito presente sobretudo na década de 40 e 50, quando a Estrada Nova estava passando por um intenso processo de urbanização, de alargamento. Nesse contexto, tem a chegada de muitos migrantes que vêm para trabalhar nesses espaços, tentando mudar a sua condição de vida, e que de algum modo acabam fixando moradia nas proximidades e que acabaram criando esses espaços de lazer e sociabilidade”.
  • Elielton aponta que, no encontro das avenidas Alcindo Cacela e Padre Eutíquio, por exemplo, havia uma enorme quantidade de bares que se destacavam na cidade em meados do século XX. Ainda na década de 80, o Bar São Jorge era um dos que tinha grande visibilidade no âmbito da boemia belenense. Hoje, ele não existe mais, porém, outros ainda estão de pé e em pleno funcionamento.
  • “No Jurunas, por exemplo, nós vamos ver vários clubes que ainda estão em atividade, clubes esses que foram criados no início do século XX. O Clube São Domingos é de 1915 e está de pé, promovendo festas e ligado à questão do esporte de margem. O Imperial Esporte Clube, a mesma coisa, que é da década de 30. O Palácio dos Bares, aqui na Condor, também é da década de 30”, enumera. “Na época não era Palácio dos Bares, primeiro foi Bar Soberano, depois Bar da Condor e depois Palácio dos Bares, ganhando esse destaque na cena musical e festiva de Belém e que vai contribuir, de algum modo, para a visibilidade de grandes profissionais ligados ao rádio, à imprensa, naquele contexto”.

Fonte: https://diariodopara.com.br/belem/memorias-de-lazer-nos-bairros-do-guama-condor-e-jurunas/