“Há pelo menos 14 mil gestantes abaixo de 14 anos e só 4% dessas meninas têm acesso ao aborto por estupro”, disse o médico
“Cerca de 80% dos estupros são contra crianças e adolescentes que muitas vezes nem sabem o que é gravidez. São violentadas por pessoas em quem elas confiam, próximas, como pai, padrasto, tio, avô, e nem têm noção do que está acontecendo”, afirma o médico ginecologista Olímpio Moraes, diretor médico da Universidade de Pernambuco, ao explicar os motivos da realização de abortos legais após 22 semanas de gestação.
Em entrevista ao jornal “O Globo”, o médico repudiou a tramitação do projeto de lei 1904/24 na Câmara dos Deputados que equipara o aborto realizado por vítimas de estupro, após 22 semanas de gestação, ao crime de homicídio, com pena que pode chegar a 20 anos de prisão.
O médico que segue à frente de um dos poucos serviços públicos no país que ainda realiza abortos legais após as 22 semanas de gestação, afirma que “meninas de 10, 11 anos, indefesas, que têm medo das ameaças e culpa. Como não têm ciclo menstrual regular, não conhecem sintomas de gravidez, a náusea a mãe pensa que é verme, virose, só se descobre a gravidez quando a barriga aparece e isso só é visível para o leigo com quatro ou cinco meses de gravidez. Depois elas fazem consulta e o médico que deveria dar informações de forma imparcial e clara não o faz”, afirmou.
“Há pelo menos 14 mil gestantes abaixo de 14 anos e só 4% dessas meninas têm acesso ao aborto por estupro. Uma menina de 10 anos tem risco de morte de duas a cinco vezes maior por complicações na gestação e sequelas. Além disso, no Brasil, a principal causa de mortes de adolescentes são complicações da gravidez e suicídio devido à violência sexual”, destacou o médico.
Moraes é o médico que, em 2020, acolheu em um hospital da Universidade de Pernambuco, uma menina de 10 anos estuprada pelo tio no Espírito Santo e que teve o direito legal de interromper a gestação impedido pela ação de bolsonaristas que chegaram a invadir a sua casa.
Contra a vontade da menina e da sua avó, que era a sua tutora, a então ministra da Mulher, Família e dos Direitos Humanos, do governo Bolsonaro, Damares Alves orquestrou uma operação para transferir a menina de São Mateus (ES) para um hospital em Jacareí (SP) com o objetivo de acompanhar a evolução do feto e realizar o parto, apesar do risco para a vida da criança violentada. Além de dois de seus assessores serem os principais suspeitos de terem vazado a identidade e a localização do hospital onde a menina passaria pelo aborto.
POLÍTICOS NUNCA ATENDERAM UMA VÍTIMA DE VIOLÊNCIA
Sobre o projeto 1904/24, o ginecologista afirma que “as pessoas não têm ideia do que estão fazendo. Políticos mexem com saúde e não têm experiência, nunca atenderam uma mulher vítima de violência. Deviam ouvir as pessoas que estão trabalhando na linha de frente”, ressaltou.
“Quando se faz lei sobre transporte, educação, agronegócio, chama-se alguém que entende do assunto. Mas quando se fala de direitos reprodutivos das mulheres, não querem ouvir as pessoas da área. Trabalham com seus dogmas, sem evidências científicas ou respeito às recomendações da Organização Mundial de Saúde. Foge do que deveria ser uma democracia laica”, destacou o médico.
Segundo ele, o próprio sistema empurra o aborto para frente. “Tem várias barreiras. É preciso mais agilidade. Mas as pessoas que querem proibir aborto com 22 semanas são as mesmas que criam barreiras levando a gravidez a chegar a 22 semanas. Eu faço tudo para que não aconteça após esse período”, disse Moraes.
Em 3 de abril, o Conselho Federal de Medicina (CFM) aprovou uma resolução que proíbe a assistolia fetal – um procedimento recomendado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) para casos de aborto legal acima de 22 semanas de gestação. A determinação do conselho foi suspensa pelo STF e Moraes comenta o assunto.
“A assistolia é um procedimento para evitar que o feto com 20 semanas nasça vivo. Se nascer vivo, isso causa muito sofrimento. Vai para cuidados paliativos, fica na UTI, vive pouco tempo. E se sobreviver é com sequelas graves. Não é justo uma mulher sair da maternidade com um feto que ela não quer, que vai ter um custo para o resto da vida. Os estudos mostram que é indolor para o feto. Com o feto morto, se induz o aborto, e será expulso via vaginal. Não é um parto. Outra mentira é que esse procedimento é feito com oito ou nove meses. Isso não ocorre. Existe um ou outro caso de sete meses, como aquele de Santa Catarina, porque enclausuraram a menina por motivações ideológicas”, explicou Moraes.
O ginecologista apontou ainda que “se o Conselho Federal de Medicina está preocupado com abortos após 22 semanas, devia bancar uma campanha para que os médicos encaminhassem as mulheres o mais rápido possível. Toda secretaria de Saúde teria que ter o serviço disponível por lei”.
“Muitos médicos negam ajuda, enrolam, passam informações erradas. Usam a objeção de consciência de forma antiética porque está no código médico que ela não pode causar danos ao paciente. Nos países europeus o médico não tem direito de objeção de consciência. Não posso causar dano a alguém por causa da minha crença. Se o profissional é Testemunha de Jeová não pode negar uma transfusão de sangue a um paciente. É a mesma coisa”, ressaltou Moraes.
A distribuição atual dos serviços de saúde que realizam o aborto legal é insuficiente. “O Brasil é um país continental em que apenas 3,6% dos municípios têm serviço de abortamento legal”, revelou Moraes. Segundo dados levantados por ele, “de 100 serviços cadastrados, metade funciona. E a distribuição não é homogênea. Aqui em Pernambuco, somos um centro de referência. No Nordeste só tem dois serviços que interrompem a gestação após 22 semanas. São cerca de dois casos por mês. Acredito que isso aconteça em torno de 2 a 3% das interrupções nos casos de estupro, exatamente as meninas mais vulneráveis, e 80% nos casos de malformações incompatíveis com a vida. A pessoa adulta sabe o que é gravidez e muitas vezes o que é estupro, por isso consegue acesso mais rápido ao aborto. Já meninas, não”.
Direito ao aborto legal negado em São Paulo
Em dezembro de 2023, sob a gestão de Ricardo Nunes, a Prefeitura de São Paulo suspendeu o serviço de aborto legal no Hospital Municipal e Maternidade da Vila Nova Cachoeirinha, localizado na Zona Norte da capital. Esta unidade era a única no estado que realizava o procedimento em gestações que ultrapassassem as 22 semanas.
Em fevereiro de 2024, uma decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo obrigou a prefeitura a oferecer o aborto legal em outras unidades municipais de referência. Paula Sant’Anna, defensora pública do Núcleo de Promoção e Defesa dos Direitos das Mulheres, afirmou que a cidade de São Paulo deixou de ser um serviço de referência em aborto legal para mulheres vítimas de violência sexual. Ela destacou que a suspensão do serviço no Hospital Municipal de Vila Nova Cachoeirinha deixou diversas mulheres vítimas de violência desamparadas.
“No Vila Nova Cachoeirinha havia uma equipe que estudou, se aperfeiçoou para atender esses casos e sempre a devolutiva era a de que meninas e mulheres eram muito bem acolhidas nesse serviço”, declarou.
“Com a suspensão o que nós vemos? Que hoje não temos mais um serviço de referência para esses casos aqui no município. Esse é um pouco da atualidade do município de São Paulo que torna tudo mais oneroso para as mulheres”, disse Paula Sant’Anna.

A Defensoria Pública de SP recebe semanalmente diversos casos de mulheres que foram vítimas de violência sexual e que precisam realizar um aborto com urgência, previsto em lei.
Mas Paula Sant’Anna afirma que o atendimento público na rede municipal de saúde da cidade de São Paulo tem negligenciado o acesso das mulheres ao serviço, especialmente quando a gestação já superou as 22 semanas.
“Quando a gente verifica, os agendamentos demoram ou já recebemos casos de mulheres e meninas que não conseguiram fazer o teste de gravidez. Há uma tendência de culpabilizar que aquela menina mulher demorou para procurar aquele sistema. Mas na verdade muitas vezes elas procuraram, mas recebem informações equivocadas, agendamentos longínquos onde elas precisam de ajuda para chegar até o serviço de referência e não conseguem. Então, é sobre isso que a gente está falando quando a gente fala de barreiras para acesso a esse abortamento”, declarou.
Um dos casos apoiados por Paula Sant’Anna na Defensoria Pública foi o de Maria Clara, pseudônimo de uma mulher vítima de estupro. Maria Clara teve o aborto legal negado por três hospitais em São Paulo e só conseguiu realizar o procedimento em outro estado com a ajuda de defensores públicos. A primeira barreira enfrentada foi no Hospital da Mulher, referência estadual em casos de violência sexual.
Maria Clara descobriu a gravidez apenas ao completar 24 semanas. “Não tive nada de diferente, não tive barriga, não tive sintoma, não tive nada”, relatou. “Eu fiz o exame de sangue, fiz o ultrassom e passei na médica. Ela me falou que como a gestação estava muito avançada, eu teria que procurar outra unidade e ajuda na Defensoria. A médica só falou que não poderia fazer e pronto. Depois ela me encaminhou para assistente, e a assistente me disse que eu teria que procurar ajuda. Só me passaram o endereço da defensoria e eu fui por conta própria”, relembrou.
Com a ajuda da Defensoria Pública, Maria Clara foi encaminhada ao Hospital Municipal do Campo Limpo, na Zona Sul de São Paulo, para realizar a interrupção da gravidez. Contudo, o procedimento foi novamente negado, apesar de ser garantido por lei.
“Fiz a triagem e ele [médico] relatou a mesma coisa: que não poderia fazer no hospital [o aborto] porque estava muito avançada a gestação. Eu já estava perdendo as esperanças. Já não estava muito bem psicologicamente e saí de lá mais abalada. Até então, eu estava achando que eu estava errada em tudo”.
Seguindo a orientação da Defensoria Pública, Maria Clara seguiu para a terceira e última tentativa: o Hospital Municipal Tide Setubal, na Zona Leste da capital.
Na peregrinação para conseguir o aborto legal, Maria Clara conta que recebeu o pior atendimento no Hospital Municipal Tide Setubal, onde ela foi obrigada a ouvir os batimentos cardíacos do feto.
“Como o atendimento estava agendado, achei que eu ia chegar e iam estar me esperando. O atendimento foi péssimo, tive que falar perto de pessoas e o pior de tudo foi precisar ouvir o coração do feto. Eu pedi para ele [profissional de saúde] parar e tirar, levantei e saí da sala”, desabafa.
A equipe médica ainda tentou convencê-la a não realizar o aborto. “Me falaram para tentar segurar o neném até nove meses, que eles me dariam laqueadura, que iam cuidar de mim e me buscar para fazer a cirurgia e tudo mais. Eu fui embora para casa acabada, não sei nem explicar. Eu já estava pensando como fazer em casa sozinha porque eu não tinha condições”.
A vítima só conseguiu realizar o procedimento em outro estado. “A defensoria me falou sobre um projeto que entrou em contato comigo e explicou como seria feito em outro estado. Foi tudo muito rápido e muito bem explicado. Nossa parecia que eu estava fora do Brasil. Foi ótimo. Desde a abordagem do começo, os exames… Foi super respeitoso”, conta.
Para a defensora pública Paula Sant’Anna, o atendimento médico que Maria Clara recebeu no hospital pode ser equiparado a tortura.
“Há uma tendência de culpabilizar que aquela menina ou mulher demorou para procurar o sistema de saúde. Na verdade, muitas vezes elas procuram, mas recebem informações equivocadas, agendamentos longínquos, precisam de ajuda para chegar até o serviço de referência e não conseguem. Então, é sobre isso que a gente tá falando quando a gente fala de barreiras para acesso a esse abortamento”, explica a defensora.
Fonte: https://horadopovo.com.br/80-dos-estupros-sao-contra-criancas-e-adolescentes-que-nem-sabem-o-que-e-gravidez-diz-medico-olimpio-moraes/