A culpa não é das chuvas – Solidariedade ao Rio Grande do Sul

ANNEBELLE RENE ANDRIA, OCTÁVIO ALVARENGA DE SOUZA E THAMIRIS PASCUOTTE*

Nos últimos dias, você deve ter reparado que os noticiários e as redes sociais têm sido tomados por um assunto que tem gerado comoção entre os brasileiros: as fortes chuvas que atingem o estado Rio Grande do Sul, provocando mortes, desaparecimentos e deixando inúmeras famílias desabrigadas. As imagens que são bombardeadas nas nossas telas causam enorme comoção em cada um que se preocupa com aquilo que é humano. Diversas cidades do RS sofrem com alagamentos, deslizamentos e inundações. Estradas estão bloqueadas, o principal aeroporto do estado está fechado, a capital está debaixo d’água.

Com a grande quantidade de chuva, as ruas das cidades estão tomadas pela água. Milhares de famílias perderam seus lares, seus pertences e a sua condição de vida mais básica, precisando procurar alojamentos para se resguardar. Falta energia. Existe uma dificuldade enorme para que os mantimentos cheguem a quem precisa, já que o deslocamento só pode ser feito através de barcos, canoas e jet-skis em grande parte das cidades.

E aqui pretende-se trabalhar algumas questões envolvidas neste triste momento que o nosso país, sobretudo os gaúchos, enfrenta.

Quando pensamos em clima, temos que entendê-lo como um sistema. Isso significa que uma coisa está ligada a outra e nada acontece enquanto um evento isolado. A seca que está acontecendo em toda a região central do Brasil e a forte onda de calor pela qual essa região está passando estão “segurando” as chuvas no Rio Grande do Sul.

Explicando: no nosso país temos a atuação de algumas massas com características diferentes, podendo ser quente ou frias, úmidas ou secas. Vamos destacar duas delas: a mEc (Massa Equatorial Continental, uma massa úmida e quente, e a mPa (Massa Polar Atlântica), uma massa fria e úmida. A mEc é responsável por trazer a umidade da floresta amazônica para a região centro-oeste e sudeste do país através de um corredor de umidade (a ZCAS – Zona de Convergência do Atlântico Sul). Guardem essas informações.

Além disso, há a influência do fenômeno El Niño, que, mesmo se encaminhando para a fase neutra, estamos passando pelos resquícios desse fenômeno que é responsável pelo superaquecimento das águas do oceano pacífico na altura equatorial. O evento, quando está configurado, além de provocar um sistema de chuvas no sul, também contribui para a formação de um sistema de baixa pressão no oceano pacífico, que por sua vez gera um sistema de alta pressão no oeste e no sudeste. Uma zona de alta pressão é uma região de “tempo limpo” de nuvens de chuva e que acaba “empurrando” os ventos e umidade para outras regiões. Nesse exato momento, na porção central do Brasil há a atuação de um grande sistema de alta pressão, que está jogando a umidade da mEc, para o Sul do país, já que essa zona de alta pressão está bloqueando a região central e sudeste de receber essa umidade. Ao mesmo tempo, desde os últimos dias de abril e começo de maio, há uma massa de ar polar avançando – ou melhor, tentando avançar- pelo país, mas sendo barrada por esse domo de calor que está estacionado. Quando uma massa de ar frio se encontra com uma massa de ar muito quente, elas geram a chamada Frente Fria, que a depender de sua intensidade, podem baixar as temperaturas e provocar muitas chuvas. 

É exatamente isso que está acontecendo no RS. O fato de algumas regiões estarem passando pela quarta onda de calor em um único ano, que já condecorou os três últimos meses como os meses mais quentes dos últimos anos, está afetando a região Sul, em especial o Rio Grande do Sul. Esse domo de calor que está gerando uma forte seca e altas temperaturas, está servindo como uma barreira para essa frente fria não avançar para o restante do país. 

Em alguns lugares do RS o acumulado de chuva já ultrapassou a marca dos 600mm. A média climatológica (isto é, o que geralmente ocorre) do mês de maio para o estado é de 100 a 180mm. Isso significa que em alguns lugares a quantidade de chuva até agora já ultrapassou mais de 400mm de anomalia. No ano passado, o estado também passou por um evento semelhante, também extremo, com um pouco menos de intensidade. É impossível, portanto, discutir a respeito das chuvas do RS sem falar sobre as mudanças climáticas. Esses eventos, como o El Niño, são eventos que existem há pelo menos 2 milhões de anos, mas que vêm sendo muito intensificados e de recorrência cada vez maior devido ao aquecimento dos oceanos, que estão no nível mais quente do registro histórico. Enquanto as previsões relatavam que só atingiríamos a marca de 1,5° de aquecimento em 2030, é alarmante pensar que atingimos essa marca em 2023.

Sabemos que a divisão da sociedade em classes faz com que diferentes grupos sociais vivam o espaço de maneiras diferentes, ocupem espaços diferentes e tenham acessos a serviços básicos de maneiras diferentes. Ao fazer o recorte de classes, vemos que as camadas mais populares da sociedade se encontram em regiões periféricas da cidade, com acesso precário, ou às vezes sem acesso, aos serviços mais básicos como saúde, educação, saneamento básico. Moradias são construídas em áreas irregulares, colocando a população em vulnerabilidade a esses fenômenos climáticos. Se em situações normais a infraestrutura já não é das melhores, imagem em um contexto de chuvas intensas, alagamentos, deslizamentos. O potencial para desastres humanos e ambientais é gigantesco.

Com os alagamentos, a necessidade do abandono de suas casas e a falta de recursos, a população está totalmente exposta às adversidades, à proliferação de doenças. Não à toa o número de mortos cresce: homens, mulheres, crianças, idosos. Esses são os maiores prejuízos: a perda de vidas!

Além disso, a perda cultural é imensa. Na cidade de Porto Alegre, é possível ver imagens do Mercado Municipal, da Casa de Cultura Mário Quintana. Pontos de turismo na cidade e pontos de divulgação e promoção da cultura popular brasileira estão submersos. Os danos são incalculáveis. O patrimônio imaterial de diversas cidades, representados por estes dois exemplos, corre riscos.

Se o grande problema no enfrentamento dessa situação é a separação da sociedade em classes, não existe ninguém que tenha mais condições de promover o amparo da população do que o Estado, em qualquer nível federativo que seja. Município, estado e Federação devem ter papel central na atuação para resolução desses problemas. Seja no resgate das pessoas ilhadas, na destinação de recursos para as regiões afetadas, na disponibilização de Marinha, Exército e Aeronáutica para auxiliarem nas missões humanitárias.

Estamos aqui falando da garantia à vida dessas pessoas. Alimentação, água potável, itens de higiene, roupas, cobertores. Garantia dos direitos mais elementares e mais básicos de um ser humano.

A tomada de decisão por parte dos Correios de não cobrar o envio de doações ao estado do Rio Grande do Sul é a demonstração prática perfeita de que é o Estado quem tem condição de chegar nos mais distantes rincões do nosso país. É o Estado quem tem o papel, e a condição, de zelar pela vida do povo, sem se preocupar com a obtenção de lucros e a exploração das camadas populares.

Os agentes estatais precisam criar mecanismos para remoção da população que ainda se encontra nas áreas alagadas, bem como, a alocação dessas pessoas em locais seguros, onde a ajuda consiga chegar.

É preciso politizar sim essas situações, afinal, as mudanças climáticas são agravadas por decisões políticas e o impacto na vida das pessoas também. Não é a primeira vez que o RS passa por grandes enchentes e já há estudos apontando os riscos que correm algumas áreas. Ao contrário de preparar as cidades para minimamente conseguirem lidar com as enchentes e evacuarem a população, os governantes optam por cortar verba de pastas necessárias para conter os desastres, baseados na ideologia neoliberal e negacionista que desacredita das mudanças climáticas e decide “poupar dinheiro”, enxugando o poder do Estado.

Durante o governo Bolsonaro, a verba para estudos e projetos de mitigação e adaptação às mudanças climáticas sofreu um corte de 93%. Os dados foram levantados pela BBC News Brasil por meio do Sistema Integrado de Orçamento do Governo Federal (Siop). Entre janeiro de 2016 e dezembro de 2018, os investimentos nessa área foram de R$ 31,1 milhões. Na gestão Bolsonaro, porém, os gastos foram de APENAS R$ 2,1 milhões.

No Rio Grande do Sul, o orçamento para equipar os agentes da Defesa Civil com equipamentos necessários para atuação preventiva e de resposta em situações de emergência foi de apenas R$ 50 mil neste ano. A Gestão de Projetos e Respostas a Desastres Naturais também sofreu cortes: o valor caiu de R$ 6,4 milhões em 2022, já ruim para um estado foco de desastres naturais, para R$ 5 milhões em 2023. Em Porto Alegre, cidade com maior poder econômico do estado, o orçamento para prevenção de enchentes em 2023 foi de R$ 0,00, mesmo com o departamento que cuida da área tendo R$ 428,9 milhões em caixa.

População resgata atingidos por alagamentos na cidade gaúcha de Canoas – Foto: Reprodução

A culpa não é da chuva. É de como agravamos os fenômenos e como escolhemos não estarmos preparados para lidar com eles. O que acontece hoje no Rio Grande do Sul é resultado da negligência política e do negacionismo climático. Precisamos nos preparar para a nova realidade, planejar estruturalmente as cidades brasileiras para conter desastres e evacuar áreas que sabemos que são de risco. É preciso ter um plano, não descaso. 

E mais uma vez, em meio ao caos, diante da negligência estatal, a solidariedade do povo brasileiro é o que tem feito a diferença. Inúmeras instituições, públicas e privadas, organizações não governamentais, movimentos sociais e pessoas, individualmente falando, têm se mobilizado para garantir o amparo à população duramente afetada.

As ações de solidariedade têm tomado várias facetas: divulgação nas redes sociais, estabelecimento de pontos de coleta de itens, doação de recursos financeiros, organização dos recursos recebidos, distribuição dos mesmos. O número de pessoas interessadas nas ações não para de crescer. A solidariedade dos brasileiros é gigantesca. E tem se repetido a cada tragédia socioambiental que o país enfrenta.

Inúmeras vaquinhas virtuais foram criadas com o objetivo de destinar recursos ao sul do país. Diversos artistas estão promovendo campanhas de conscientização e arrecadação.

E que continuemos assim! Sem poupar esforços para garantir a segurança dessas pessoas. Caso tenha interesse em doar, os itens sugeridos são água, alimentos, roupas, cobertores, produtos de higiene pessoal.

A defesa do povo brasileiro deve vir em primeiro lugar. A garantia da segurança às vítimas desta tragédia é prioridade. A ação de qualquer organização deve colocar a vida em primeiro lugar. A população não pode continuar vulnerável às intempéries climáticas, deve haver planos municipais, estatais e federais de prevenção e reparação diante das tragédias socioambientais.

Se você, que está lendo, tem condição: contribua. Você fará diferença na vida de milhares de pessoas. Procure o ponto de arrecadação de recursos mais próximo de sua casa ou trabalho. E lembre-se, não vote em quem não se preocupa com o meio-ambiente, com o povo e o nosso país. 

Os estudantes de Geografia da Unesp de Rio Claro se solidarizam com as vítimas deste triste episódio de nossa história.

*Annebelle Rene Andria, Octávio Alvarenga de Souza e Thamiris Pascuotte são estudantes do curso de Geografia da Universidade Estadual Paulista (UNESP) de Rio Claro

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