Transposição do São Francisco é considerada uma das maiores obras de irrigação e integração já realizada no país – Foto: CBHSF
Caso a privatização se concretize, a empresa vencedora tomará conta de 609 quilômetros de canais num contrato de 2026 a 2042
O governo federal está propondo entregar ao setor privado a operação, manutenção e ampliação da oferta de água da transposição do Rio São Francisco, responsável por levar água ao semiárido nordestino. A proposta é privatizar através de uma “Parceria Público-Privada” (PPP), com edital a ser lançado em agosto e leilão já para novembro deste ano.
A inclusão do Projeto de Integração do Rio São Francisco com Bacias Hidrográficas do Nordeste Setentrional (PISF) no Programa de Parcerias de Investimentos PPI) foi feita por decreto ainda na gestão Bolsonaro, em agosto de 2019, porém, sem qualquer estudo do modelo. A proposta só começou a sair do papel em 2023, primeiro ano de governo Lula, pelo Ministério da Integração e do Desenvolvimento Regional (MIDR).
Se levado a cabo, a empresa vencedora será responsável por operar os eixos leste e norte, além dos canais com extensões da transposição do Apodi e do Piancó, que cruzam áreas de Ceará, Paraíba e Rio Grande do Norte.
A parceria prevê um investimento de US$ 2,76 bilhões (ou cerca de R$ 16 bilhões, mais que os R$ 14 bilhões investidos pelo governo federal na obra que demorou 14 anos).
O secretário de Fundos e Instrumentos Financeiros do MIDR, Eduardo Tavares, diz que o projeto é “inovador” e vai ser a primeira PPP administrativa do governo federal, tendo a União como poder concedente.
A União vai continuar garantindo aportes no projeto e o governo federal já fez um pacto com os Estados de Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará que vão paga, pela água bruta do São Francisco.

“É a União que vai licitar e contratar esse concessionário. É ela que vai fazer os repasses, os aportes para o concessionário”, explica Eduardo, acrescentando que não vai haver relação entre os Estados e a empresa compradora.
A Transposição do São Francisco é considerada uma das maiores obras de irrigação e integração já realizada no país e atende hoje a um público estimado de 12 milhões de pessoas, em 390 municípios do Nordeste. Caso a privatização se concretize, a empresa vencedora tomará conta de 609 quilômetros de canais. O edital prevê que a Parceria Público-Privada (PPP) dure de 2026 a 2042.
O que chama a atenção é a proposta de entregar ao setor privado a administração da água do Velho Chico numa região marcada pela seca recorrente, dando continuidade a um processo iniciado pelo governo Bolsonaro.
O estranhamento se dá, pois, em São Paulo – e não só – o Partido dos Trabalhadores e legendas da base aliada denunciaram a privatização da Companhia de Saneamento de São Paulo (Sabesp), apontando a tendência de reestatização do saneamento no mundo, devido ao aumento das tarifas, visando o lucro dos entes privados, e a queda de qualidade do serviço prestado devido a falta de investimento em estrutura, também visando o lucro.
Assim como nas privatizações da Sabesp ou da Cedae (no Rio de Janeiro), o discurso é o de que se garantirá “um conjunto grande de indicadores de desempenho e de qualidade”, o que nos casos mencionados resultou apenas em letras mortas no contrato.
Uma das diferenças é o compartilhamento de riscos em que, supostamente, o ente privado também arcará com custos em caso de imprevistos. “Isso acaba mitigando impactos ao setor público, que hoje absorve 100% desses custos”, explica.
“Nós estamos propondo a substituição dos atuais contratos por um contrato de longo prazo, com um conjunto grande de obrigações e com uma remuneração proporcional aos seus resultados. É uma forma de garantir que o serviço seja adequadamente executado, com mecanismos para evitar qualquer falha ou atraso nas reações necessárias de operação, manutenção, além da transparência contratual exigida”, argumenta Ian Ramalho Guerriero, do BNDES.
O projeto prevê que a concessionária precisará fazer, entre outras coisas, investir na ampliação da capacidade das estações de bombeamento, com investimento previsto de R$ 1,6 bilhão. Com isso, os eixos terão a capacidade operacional dobrada.
SANEAMENTO PRIVATIZADO CUSTA CARO AO PAÍS
A crescente onda de privatização do saneamento nos estados e municípios brasileiros alerta que entregar a distribuição da água do Rio São Francisco para a iniciativa privada não é um bom negócio, principalmente para a população. No Rio de Janeiro e São Paulo, onde o serviço foi entregue aos privatistas recentemente, o que se viu foi uma piora abrupta do serviço oferecido e, ao mesmo tempo, aumentos excessivos nas contas da população.
Contando com o apoio do então governo Bolsonaro, a Companhia de Águas e Esgotos do Estado (Cedae) foi privatizada em 2021, permanecendo pública apenas o serviço de produção de água. A estatal fluminense foi fatiada em quatro blocos compostos e sua operação dividida em 35 municípios do Rio de Janeiro.
No mais recente reajuste das tarifas, o fornecimento de água no Rio passou a ter acréscimo de: 9,83% na concessionária Águas do Rio I; 12,77% na Águas do Rio IV; 11,49% pela Iguá e de 14,28% na Rio +. O reajuste chegou a ser alvo de questionamento na Agência Reguladora de Energia e Saneamento Básico do Rio de Janeiro (Agenersa) pelo deputado estadual Jari Oliveira (PSB).
“Água, aqui no Rio, virou artigo de luxo. As tarifas de água das concessionárias dos serviços concedidos da Cedae estão numa crescente sem igual. A população vem sofrendo muito com a falta d’água constantes e duradouras. Fizemos semana passada uma reunião com a Agência Reguladora do Estado sobre este assunto e vamos, ainda este mês, promover uma audiência pública na Alerj, na tentativa de frear estes reajustes”, critica o deputado Jari Oliveira, presidente da Comissão de Saneamento Ambiental da Assembleia Legislativa do estado (Alerj).
Em São Paulo, com uma privatização muito mais recente, em 2024, a situação não é muito melhor. O governo Tarcísio de Freitas (Republicanos), ex-ministro e ainda aliado de Bolsonaro, entregou o controle da Sabesp, maior companhia de saneamento da América Latina, para a Equatorial Energia.
A empresa, que não possui qualquer experiência em saneamento, é considerada pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) a pior distribuidora de energia do país.
O MP-SP instaurou um Inquérito Civil para apurar a contaminação da água nos reservatórios Billings e Guarapiranga, em São Paulo. Os reservatórios abastecem mais de cinco milhões de pessoas na Grande São Paulo e moradores reclamam do mau cheiro, similar ao de enxofre, e relatam que a água sai amarelada, esverdeada ou marrom. Ao mesmo tempo, população paulistana reclama de aumento nas tarifas, com contas com aumento de chegando a 400%.
O caso foi levado ao MP pela deputada federal Tabata Amaral (PSB-SP) e pela vereadora Renata Falzoni (PSB). Ainda que sua base aliada e mesmo o próprio PT esteja se colocando contra a privatização da água, fica o questionamento de por quê o governo federal segue o projeto bolsonarista de privatizar a água no semiárido nordestino, região historicamente marcada pela escassez deste que é um bem essencial à vida.
RODRIGO LUCAS
Fonte: https://horadopovo.com.br/governo-resgata-decreto-para-privatizar-a-transposicao-do-rio-sao-francisco/