Foto: Vinicius Loures/Câmara dos Deputados
NÉSIO FERNANDES (*)
A derrubada, pelo Congresso, do decreto que reajustava o IOF escancarou como a política tributária hoje se define tanto no plenário quanto nas redes. Na medida revogada, as operações mais frequentes dos estratos C e D ficariam isentas de impacto significativo, e a carga recairia sobre operações realizadas por pessoas de maior renda, com estimativa de arrecadação de R$ 30 bilhões. Bastou o rótulo “imposto contra o povo”, impulsionado por influenciadores que não representam a maioria da população, para criar o palco que uniu 383 deputados e sepultou a norma, apesar do pacto firmado entre o Executivo e os presidentes da Câmara e do Senado.
Uma lição é clara: sem comunicação pedagógica e base social mobilizada, nenhum ajuste justo resiste ao vendaval da desinformação, instrumentalizado por interesses conhecidos e bem definidos. Mas isso é o palco, não é a obra dos atores em si.
Por outro lado, a reação do governo e da esquerda deve ser dosada. Não se decide a estratégia da próxima Copa na primeira hora da derrota do 7 × 1. O embate dá-se no contexto de um Orçamento recorde de R$ 5,888 trilhões. Quase 28%, R$ 1,655 tri, destinam-se apenas ao refinanciamento da dívida pública. Enquanto o Tesouro remunera credores sem protesto. Com cerca de R$ 600 bilhões previstos incluindo saldos acumulados, o agronegócio celebra o maior Plano Safra já visto. O Parlamento controla cerca de R$ 50 bilhões em emendas, menos de 1% do orçamento, que aparentemente determina a arquitetura da construção de maiorias ou de derrotas ao governo. No entanto, a natureza do sucesso, ou do infortúnio, é essencialmente da qualidade da relação política.
Não é razoável que o Executivo se torne refém dessa fração destinada a emendas; tampouco há votos, nem vontade política, para extingui-la. A saída passa por acertar na política, rever e cumprir acordos, dar transparência às emendas e, progressivamente, implantar relatórios de impacto que as vinculem a metas nacionais verificáveis.
Apesar do barulho, os indicadores sociais impressionam. Segundo o IBGE, programas federais de transferência de renda reduziram em 80% a extrema pobreza entre 2023 e 2025; sem eles, a miséria teria dobrado. A taxa de desemprego caiu para 6,2% no trimestre móvel encerrado em maio de 2025, o menor da série histórica, e o salário mínimo voltou a registrar ganho real. No topo da pirâmide do Brasil, os quatro maiores bancos lucraram R$ 108,2 bilhões em 2024, recorde nominal sustentado por juros altos.
Há, portanto, espaço moral e fiscal para tributar fortunas e rendimentos financeiros, ação que não demoniza o sucesso, mas corrige um sistema em que o peso recai desproporcionalmente sobre salários, sobre a base da pirâmide social.
Mesmo assim, parte do establishment financeiro pressiona pela revogação dos pisos constitucionais de saúde e educação. Bastaria um gesto do Planalto para o Congresso aprovar a desvinculação em rito relâmpago, com impacto modesto diante do trilhão voltado à dívida. Trocar direitos sociais por um ajuste torto geraria alívio efêmero com custo político e social duradouro, além de comprometer o SUS e o futuro das escolas.
Depois da derrota do IOF, a esquerda no poder precisa respirar. Rotular o Congresso como “inimigo do povo” produz catarse, não governabilidade. Lula, estadista forjado no fim da Guerra Fria e único a conduzir o Brasil por três mandatos democráticos, sabe que reformas distributivas exigem paciência, coalizão e capilaridade federativa.
A justiça tributária seguirá enfrentando resistência de quem lucra com o status quo; triunfará quem combinar firmeza programática, articulação permanente e comunicação que fale aos bolsos, e não apenas às bolhas, da sociedade que trabalha, empreende e sonha. Não é razoável à esquerda, depois de uma tentativa de golpe que incluiu explodir um aeroporto e assassinar as principais autoridades do país, convocar passeata e eleger como palavra de ordem o “Congresso Nacional inimigo do povo”.
Na cena democrática, a luta deve ser travada na sociedade e não contra o Parlamento.
(*) Médico sanitarista
Fonte: https://horadopovo.com.br/justica-tributaria-a-luta-e-na-sociedade-nao-contra-o-parlamento/