Salve, camarada Tiradentes!

Foto: monumento, no Largo do Sol, na cidade de Tiradentes- MG, erguido em 1962 em homenagem a Joaquim José da Silva Xavier, Tiradentes

Tanto o Brasil quanto o alferes de Minas, literalmente, já nasceram lutando contra a exploração. Como diz o cantor Zeca Pagodinho em um de seus sambas sobre o povo brasileiro: “Êta povo pra lutar!”

Recentemente, ao participar de um seminário que discutia os caminhos brasileiros para a superação definitiva de nossa dependência, tive a oportunidade de lembrar que o Brasil, de fato, tem uma vasta experiência como país dependente, um país que foi explorado e saqueado por potências estrangeiras desde que surgiu no mundo.

BARBÁRIE EUROPEIA

Sabemos bem o quanto significou para os destinos de sua população, o país ter nascido em meio à selvageria colonialista, ou seja, em meio ao período que Marx chamou de acumulação primitiva do capital. Fase de extrema barbárie perpetrada pela chamada “civilização europeia”. Foi uma longa batalha pela liberdade, desde os primeiros dias de nossa existência. O Brasil literalmente nasceu lutando. Como diz o cantor Zeca Pagodinho, em um de seus sambas sobre o povo brasileiro: “Eta povo pra lutar!”

As primeiras gerações nascidas em território nacional já se defrontavam – da maneira que era possível – com a espoliação desenfreada do país pelos colonizadores europeus. A roubalheira teve início com o extrativismo puro e simples, do Pau Brasil e de outros produtos, depois foi substituída pela produção de açúcar, baseada no latifúndio escravista, e na exploração do ouro e diamantes. Calcula-se em 773 toneladas de ouro e 7 milhões de quilates de diamantes foram saqueados do Brasil dos primórdios da mineração até 1820.

O sequestro da mão de obra escrava, trazida à força da África para o Brasil, para a fabricação, primeiro de açúcar, depois de ouro e café, engrossou na colônia as fileiras dos que não se renderiam à prepotência, aos crimes e à violência dos colonos e traficantes de escravos europeus. A miscigenação ocorrida no Brasil, unindo negros, índios e brancos aqui nascidos, impulsionou imensamente a resistência nativa contra o domínio estrangeiro e formou a base de nossa nacionalidade.

NAÇÃO BRASILEIRA

Pode-se dizer que a nação brasileira se forjou na luta por sua liberdade. Os indígenas e depois Zumbi e seus companheiros deram os primeiros passos na resistência. A batalha de Guararapes, em 1648, e a consequente expulsão dos holandeses, por sua vez, representou um salto de qualidade no grau da resistência. Este movimento revelou uma inédita união das três raças que se constituíam em solo pátrio. Indígenas, afro descendentes e europeus que adotaram o Brasil, assim como seus filhos nascidos no país, se uniram em tropas para expulsar os invasores holandeses, à revelia de Portugal.

Um fato marcante atestou a nova consciência nos participantes dessa empreitada. Pela primeira vez surge um manifesto que falava em nome da “Nação Brasileira”. Ali começava a se delinear a convicção de que seriam os nativos do Brasil – e não os portugueses – os únicos capazes de defender efetivamente a soberania territorial do país contra os estrangeiros. O negro Henrique Dias, o indígena Felipe Camarão e o europeu André Vidal de Negreiros haviam assumido juntos a luta em defesa da integridade do Brasil.

Os inconfidentes de Minas Gerais, liderados pelo alferes da cavalaria do Regimento de Dragões de Minas, Joaquim José da Silva Xavier, um militar nacionalista conhecido por Tiradentes, perceberam claramente essa condição que ocorrera no século anterior e se espelharam no exemplo dos heróis de Guararapes para levar adiante a batalha pela libertação do Brasil.

EXEMPLO AOS INCONFIDENTES

É da lavra do inconfidente Luís Vieira da Silva, o “Cônego Vieira”, a constatação, compartilhada com os demais revoltosos, de que Portugal, assim que se desligou da União Ibérica, pretendia manter uma espécie de “acordo” com os holandeses em detrimento da ocupação territorial brasileira. Os inconfidentes se fixaram nos relatos de que exclusivamente os “nacionais” se rebelaram e não permitiram a permanência dos holandeses. Vem desta batalha, inclusive, a criação do Exército brasileiro.

Vieira defendeu, durante a inconfidência, no fim do século XVIII, que os brasileiros tinham que se mirar no exemplo dos “nacionais” de Guararapes, ou seja, nos brasileiros que expulsaram os holandeses sem demandar apoio de Portugal. É sabido também que, além dos vencedores de Guararapes, os líderes da independência das 13 colônias inglesas do norte (mais tarde EUA) e os iluministas, que libertaram a França do atraso feudal, foram também referência para os inconfidentes de Minas.

Foram muitos os artífices das batalhas que culminaram com o fim do colonialismo e da exploração de Portugal. Podemos citar alguns deles, como os irmãos Andradas, com especial destaque para Antônio Carlos e José Bonifácio. Podemos citar os alfaiates, na Bahia, a Revolução Pernambucana e a heroica luta do povo do Rio que, nas ruas, encurralou as tropas portuguesas que se haviam rebelado contra a independência. Também, no pós-7 de Setembro, na Bahia, não podemos esquecer os bravos de Pirajá, que deram a última palavra na expulsão dos portugueses.

PROGRAMA REVOLUCIONÁRIO

Não foi fácil a trajetória que culminou com o enterro da exploração colonial do Brasil. Mas, dentro dela, há que se destacar que o programa político elaborado e defendido por Tiradentes entre 1785 e 1792 para a construção de um Brasil livre e independente foi um marco decisivo e fundamental em toda essa trajetória. Já naquela época, o alferes de Minas cumpriria um papel de vanguarda ao elaborar um programa político arrojado e amplo que desfraldava as bandeiras pela Independência, República, Abolição, Ensino público e Indústria.

Sérgio Rubens Torres, um dos mais importantes dirigentes revolucionários do nosso tempo no Brasil, destacou, quando ainda estava entre nós, a força das ideias defendidas por Tiradentes e chamou a atenção para o fato de ser surpreendente a consciência manifestada, já naquela época, de que sem indústria não pode haver independência completa.

Seu companheiro de direção dos revolucionários brasileiros, Cláudio Campos, também diria sobre Tiradentes: “foi o herói maior da nação, ao viver e morrer pela liberdade, independência e desenvolvimento do Brasil. Ele é o nosso símbolo imperecível na luta contra todos os colonialismos, todos os imperialismos e todos os traidores da Pátria”.

O movimento mineiro reuniu amplos setores e teve início assim que foi baixado o decreto, por Lisboa, proibindo – a mando da Inglaterra – a existência de qualquer fabricação têxtil no Brasil. Sim, porque foi a Inglaterra que destruiu seus potenciais concorrentes em todas as partes do mundo. Antes de bater no peito e se dizer, demagogicamente, defensora do livre mercado, ela destruiu – pela força – toda e qualquer produção têxtil que pudesse competir com a sua.

PROIBIÇÃO DE FÁBRICAS

Os ingleses já haviam destruído a fabricação têxtil na Índia, país dominado diretamente por ela, e estendeu a proibição para todas as demais regiões do mundo, inclusive o Brasil, para se tornar monopolista e obter seus superlucros em detrimento dos demais países.

A proibição de fábricas de tecidos no Brasil e a intensificação da exploração das riquezas nacionais, particularmente do ouro e diamantes, foi o estopim que provocou uma grave crise política no país – expressada pela Inconfidência Mineira. Esta crise revolucionária só foi ser resolvida com a independência em 1822. A vinda da Coroa portuguesa para o Brasil, fugindo das guerras napoleônicas, não só não conseguiu aplacar o movimento dos brasileiros, como acabou fortalecendo-o.

Cerca de 30 anos após a Inconfidência Mineira, conquistamos a independência e nos livramos de Portugal. A Independência do Brasil, em 7 de setembro de 1822, foi a conquista da primeira bandeira do programa defendido por Tiradentes.

Mas, para se conquistar a segunda bandeira, a República, passaram-se mais de sessenta anos de domínio inglês em aliança com o que havia de mais atrasado no país. Em seguida à independência, caímos nas garras do colonialismo inglês, que na verdade, já dominava Portugal desde pelo menos 1703, quando do Tratado de Methuen, um acerto servil que provocou a destruição da indústria nascente de Portugal. A submissão lusitana à coroa inglesa seria responsável pelo retardo na eliminação do regime feudal português.

Podemos dizer que, com a independência, já não éramos mais uma colônia no sentido estrito da palavra. Afinal, formalmente, tínhamos conquistado a autonomia política. No entanto, na realidade, passamos a ser uma espécie de semicolônia inglesa, com alguma autonomia política, mas sem autonomia econômica.

COROA BRITÂNICA

A Coroa Britânica conseguiu manter o controle rigoroso sobre a economia brasileira. Impôs, de imediato, para reconhecer a independência do país, a condição de que as dívidas milionárias de Portugal com a Inglaterra fossem assumidas pelo Brasil. Um verdadeiro roubo. Um assalto criminoso, típico do colonialismo europeu. Mais do que isso, além de endividar o Brasil já no seu nascedouro, eles tiveram força para entregar ao latifúndio escravista, reacionário e totalmente submisso à coroa britânica, as rédeas do poder no Brasil.

O Brasil passou todo esse período sendo sangrado e mantendo uma economia rural extremamente retrógrada e com baixíssima produtividade. Neste período se destacaram a luta de figuras como Silva Jardim, Lopes Trovão, Luiz Gama, Rui Barbosa, Benjamim Constant, José do Patrocínio, Deodoro, Floriano e muitos outros, todos líderes da causa abolicionista e republicana.

Às vésperas da vitória da revolução abolicionista e republicana, em 1888/9, já tinha se processado uma mudança significativa na forma como se dava a exploração da economia brasileira. A humanidade já assistia ao surgimento dos grandes monopólios e trustes internacionais, e, com eles, as guerras de rapina patrocinadas pelas grandes potências. O colonialismo já se transformava em imperialismo, como apontou alguns anos depois o líder russo Vladimir Lenin.

OS ROTHSCHILDS E O BRASIL

O colonialismo tinha sido um regime onde predominava a exploração comercial e a imposição de mercadorias da metrópole em troca de matérias-primas das colônias. Ele foi substituído pelo imperialismo, um sistema já controlado pelas oligarquias financeiras – fruto da fusão de monopólios bancários e industriais – que, centralmente, exportava capitais para os países dominados. Intensifica-se nesta fase a espoliação pelos mecanismos financeiros.

É fato que a conquista da Abolição e República em 1888/9, segunda e terceira bandeiras respectivamente do programa de Tiradentes, transformou o Brasil, de uma semicolônia escravista, dominada pela Inglaterra, numa nação livre da escravidão, rumando para a superação das relações pré-capitalistas e pretendendo implantar uma economia baseada no trabalho assalariado.

O Brasil, neste momento já é um país sob o domínio, não mais da burguesia comercial, mas do capital financeiro inglês. Os dois primeiros governos da República, o de Deodoro da Fonseca – com Ruy Barbosa e Serzedelo Correa como ministros da Fazenda – e o de Floriano Peixoto, foram governos que resistiram ao domínio do imperialismo inglês e tentaram industrializar e desenvolver o país. Eles pretendiam consolidar a independência econômica e fazer avançar as forças produtivas, mas foram derrotados pelos Rothschilds e o latifúndio.

A aliança dos banqueiros ingleses com os latifundiários brasileiros, agora já não apenas produtores de açúcar, mas principalmente de café, no interior de São Paulo, chegou ao poder em 1894 com Prudente de Moraes e Campos Sales.

Essa aliança reacionária interrompeu bruscamente as transformações progressistas dos dois governos anteriores e impediu o avanço das forças produtivas. Com isso, o Brasil apesar do fim da escravidão e do início do trabalho assalariado, permaneceu na condição de país rural, atrasado, exportador de matérias primas e importador de produtos industriais ingleses.

REVOLUÇÃO DE 30

A libertação do imperialismo inglês só foi conquistada com o vigoroso movimento armado liderado por Getúlio Vargas em 1930. É neste período que os dois últimos tópicos do programa de Tiradentes são colocados em prática. O país dá um grande salto à frente ao romper com as amarras inglesas e inicia um forte processo de industrialização, de modernização e de avanços sociais. Como resultado dessa revolução, o Brasil deixou de ser uma grande fazenda e se tornou um país urbano, moderno e industrial.

É deste período também (1934) a criação do sistema brasileiro de Universidades Federais. Foram implantadas universidades federais públicas em todos os estados e o ensino público teve um impulso jamais visto no país. Era o quarto item do programa de Tiradentes. É certo que os inconfidentes defenderam também a interiorização da capital, objetivo que foi plenamente alcançado por Juscelino Kubitschek, em 1960.

A partir de 1945, com a derrubada de Getúlio, o Brasil, que havia se livrado do imperialismo inglês com a revolução de 1930, passou a ser intensamente assediado e atacado pelo já poderoso imperialismo norte-americano. Os EUA haviam se fortalecido no final da II Guerra Mundial, já que, diferente da Europa e da URSS, ganharam dinheiro com a guerra e não tiveram seu território destruído pelos bombardeios nazistas.

MORTE DE ROOSEVELT

A partir da morte do presidente Franklin D. Roosevelt, presidente dos EUA, em 1945, e da ascensão de Harry Truman ao poder, o imperialismo americano tornou-se extremamente agressivo e passou a trabalhar diuturnamente, e com todas as armas possíveis, contra os governos desenvolvimentistas de Getúlio, Juscelino e Jango. Esta agressividade culminou, em 1964, com a imposição ao país, através de um golpe de Estado, de uma ditadura que durou 21 anos, Implantou-se um regime que interrompeu o processo de independência econômica brasileira.

Após a longa jornada pela derrubada da ditadura no Brasil, tivemos a ofensiva neoliberal no mundo, um movimento propiciado pela queda da URSS. Este episódio foi consequência direta da traição ao socialismo, inicialmente de Kruschev, e, depois, de Gorbachev e Yeltsin. Com idas e vindas, esta ofensiva neoliberal perdura até hoje no Brasil. Muitas conquistas obtidas durante toda a trajetória pela libertação do Brasil foram destruídas.

RESISTIR AO IMPERIALISMO

Estamos, na verdade, vivendo hoje uma fase de resistência e de reconstrução do país. Travamos na atual etapa de nossas história uma luta intensa contra o imperialismo americano, que, como é sabido, já não é mais o todo poderoso de antes. Seus sócios internos, hoje representados principalmente pelo bolsonarismo, são cada vez mais cinicamente anti-Brasil.

Este retrospecto, que fazemos neste 21 de Abril, tem alguns significados. Primeiro ele nos dá a oportunidade para dizer em alto e bom som: “Valeu camarada Tiradentes!”. Sua luta incendiou os corações e mentes dos brasileiros de várias gerações e continuará assim até a vitória final!

Segundo, e também muito importante, ele reafirma a importância de se ter referência histórica para a condução da luta no momento presente. Como diz um grande comandante militar soviético, vitorioso na II Guerra Mundial, “sem a lâmpada da história, a tática estará no escuro”.

LEGADO DE LUTAS

Ou seja, sem levar em conta todo o legado de lutas e perceber um fio condutor, sem uma referência nas batalhas do passado, não se vai a lugar algum. É por isso que os colonialismos, os imperialismos e demais ladrões impõem ao resto do mundo o niilismo histórico. Seu objetivo é manter a ignorância sobre os fatos para amortecer a luta e seguir dominando e roubando os povos.

A história, ao contrário do que pensam alguns, não começou quando nós entramos em cena. Ela vem desde as primeiras gerações de brasileiros. Temos, portanto, uma grande herança a cultuar. Temos também muito acúmulo e urge que o aproveitemos ao máximo em nossa luta atual. Tivemos erros e acertos em toda essa trajetória. Vamos aprender com todos eles. O programa de Tiradentes, certamente, é um dos grandes acertos de toda essa trajetória de libertação nacional.

SÉRGIO CRUZ

Fonte: https://horadopovo.com.br/salve-camarada-tiradentes/