STF descriminaliza porte de maconha e define quantidade para diferenciar usuário de traficante

Ministro Luís Roberto Barroso preside sessão plenária no STF – Foto: Andressa Anholete/STF

O Supremo Tribunal Federal concluiu nesta quarta-feira (26) o julgamento sobre a descriminalização do porte de maconha com a fixação de balizas para diferenciar uso e tráfico, encerrando, enfim, uma discussão iniciada em 2015.

Na última terça (25), a corte já havia decidido pela descriminalização, mas faltava definir uma série de temas, o principal deles envolvendo a quantidade que diferencia usuário e traficante, que ficou fixada em 40 gramas, ou seis pés de maconha. A quantidade é um meio termo entre a proposta do ministro Alexandre de Moraes (60 gramas) e a do ministro Cristiano Zanin (25 gramas).

Outros elementos, no entanto, serão levados em consideração. Uma pessoa apreendida com menos de 40 gramas, por exemplo, pode ser enquadrada como traficante se houver provas de venda da droga, como a presença de balanças de precisão e anotações sobre a comercialização do entorpecente.

Ou seja, a quantidade é um critério relativo, e não absoluto. Ele servirá para que a pessoa flagrada com até 40 gramas seja presumida como usuária se não houver provas de tráfico.

O Supremo decidiu que a quantidade estabelecida vale até que o Congresso legisle sobre o tema. Também definiu que a polícia não poderá consignar no auto de prisão justificativas arbitrárias de caráter subjetivo, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal da autoridade e de nulidade da prisão.

A decisão também estabelece que usuários não podem ser submetidos ao inciso II do artigo 28 da Lei de Drogas, que aplica a sanção de prestação de serviços à comunidade. De acordo com a corte, essa é uma pena corporal, que, portanto, tem natureza penal.

Com isso, serão aplicadas ao usuário apenas as sanções administrativas de advertência sobre os efeitos da droga e comparecimento a programa ou curso educativo.

Também ficou decidido que a autoridade policial deverá notificar o usuário a comparecer a Juizado Especial Criminal até que o Conselho Nacional de Justiça estabeleça um novo rito.

Os ministros também determinaram que o Conselho Nacional de Justiça, em articulação com o Executivo e o Legislativo, deve adotar medidas para o cumprimento da decisão, além de promover mutirões carcerários com a Defensoria Pública para apurar e corrigir prisões que tenham sido decretadas fora dos parâmetros determinados pelo Plenário.

“Ninguém no Supremo Tribunal Federal defende o uso de drogas. Pelo contrário, nós desincentivamos o uso de drogas. Drogas ilícitas são uma coisa ruim”, ressaltou o ministro Luís Roberto Barroso, presidente do STF. “Estamos debatendo a melhor forma de enfrentar esse problema e minimizar suas consequências para a sociedade. E constatamos que a não fixação de uma quantidade distintiva tem sido uma má política pública”.

Segundo Barroso, a definição desse parâmetro para distinguir usuário de traficante vai evitar que o excesso de encarceramento “forneça mão de obra para o crime organizado nas prisões brasileiras”.

O tribunal também vedou o contingenciamento do Fundo Nacional Antidrogas e estabeleceu que parte da verba seja usada para campanhas sobre o uso de drogas.

ENCARCERAMENTO

O Brasil é o terceiro país do mundo com o maior número de encarcerados. De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), atualmente existem cerca de 830 mil pessoas privadas de liberdade, sendo a Lei de Drogas a que mais encarcera indivíduos no País. A pesquisa de mestrado de Alessandra Nogueira Lucio, graduada em Direito pela Universidade de Mogi da Cruzes, revelou como essa lei contribui para o encarceramento em massa de pessoas negras e pardas.

“Quando se fala em drogas, o maior número de condenações é de pessoas negras, que constituem 68% da população presa. Os motivos que contribuem para esse número são diversos e vão além do tráfico de drogas em si. Existe uma diferença na abordagem policial entre negros e brancos detidos pelo mesmo crime e o racismo estrutural presente no tribunal”, destaca a advogada.

Alessandra analisou desde a questão histórica e social desses indivíduos até o processo de julgamento. A pesquisadora chama atenção para a origem e condição social nas quais essa população está inserida, uma vez que esses dois fatores têm grande influência na hora da audiência. Ela destaca que o lugar de maior circulação de drogas são as periferias, onde também reside a maioria da população negra.

“A periferia já é naturalmente vista como um lugar central de tráfico. Então, para a polícia, significa que todo negro, se abordado nesse lugar com droga, ainda que com uma quantidade mínima, já é traficante. Muitas das vezes, o jovem não está cometendo o ato do tráfico, mas o policial não vai olhar para isso”, aponta.

Por outro lado, a abordagem e o julgamento policial mudam em um bairro afastado de áreas pobres: “Em um bairro nobre, se um indivíduo é pego com droga, é considerado apenas como usuário e não como traficante”, relata a advogada. A diferença de tratamento e de termos usados pelos policiais são cruciais para o julgamento desses indivíduos dentro dos tribunais.

“Se o jovem negro é detido pela polícia, ao chegar ao sistema de justiça, o que é validado para os juízes é o testemunho do policial. Se o policial falou que ele foi forjado com x quantidade de droga, é isso que vai valer. Mas, para uma pessoa branca, é concedido o direito de explicação, de defesa e de advogado. Além de ser um sistema estruturalmente racista, o Sistema Judiciário também é injusto. A aplicação da lei para brancos e negros não é igual.”

Criada em 2006, a Lei de Drogas tem o objetivo de combater a utilização e a comercialização de drogas. Apesar desse esforço, a pesquisadora defende que a forma como a lei é aplicada não combate, de fato, as drogas, mas sim os corpos negros. A lei não determina, por exemplo, uma quantidade mínima de droga necessária para a prisão de um indivíduo. “Sem essa regulamentação, a decisão de condenar ou não o indivíduo fica a cargo do juiz. Ele não vai analisar a questão social do indivíduo, apenas a lei e o testemunho do policial.”

Além da falta de regulamentação, a pesquisadora aponta também para a falta da análise individual de casos negros. “Numa custódia, a questão social do branco é analisada, mas a do negro não. Quando temos um juiz e ele não quer analisar algo que parece óbvio, que é a questão social, não é porque isso não é importante, é simplesmente porque ele tem uma visão racista. ‘Você é negro e cresceu na periferia, é óbvio que você é um criminoso’ .” 

Além da classificação de traficante, o tempo de condenação para pessoas negras é maior. “No mínimo, são seis anos de prisão. Se o jovem não estava cometendo o ato do tráfico, mas vai encarcerado injustamente, você comete um genocídio não só com ele, mas também com sua família”, afirma a advogada.

A pesquisadora defende não apenas um julgamento imparcial, mas também uma atenção para a questão social de cada indivíduo e um amparo jurídico por parte das autoridades. “Na maioria das vezes, essas pessoas não terão um advogado. Elas vão precisar de um defensor e nem sempre esse defensor irá poder fazer tanto por ela em comparação com aquela pessoa branca que tem um advogado particular.”

Para que isso aconteça, Alessandra prevê a necessidade de mais pessoas negras adentrarem o Judiciário. “Hoje, temos um sistema de justiça quantitativamente maior de pessoas brancas, que fazem essas leis e as aplicam. Para que o contexto social do negro seja, de fato, levado em conta, é preciso que pessoas negras façam parte também desse sistema.”

Fonte: https://horadopovo.com.br/stf-descriminaliza-porte-de-maconha-e-estabelece-quantidade-para-diferenciar-usuario-de-traficante/