Vladimir Carvalho, uma vida dedicada ao cinema brasileiro

Foto: Sergio Amaral/Reprodução UGRGS

Vladimir Carvalho, um dos mais importantes cineastas brasileiros, morreu, nesta quinta-feira (24), vítima de enfarto, em um hospital de Brasília, faltando apenas três meses para completar 90 anos.

O diretor paraibano, radicado em Brasília desde os anos 60, dedicou quase 70 anos de sua vida ao cinema brasileiro, em especial ao documentário.

Retratando de maneira crítica e sensível a realidade do país, momentos políticos e históricos importantes, denunciando as injustiças sociais, a vida dura e miserável do sertanejo e a pobreza nas periferias das grandes cidades, inscreveu o seu nome com letras maiúsculas no documentário brasileiro.

Em suas andanças pelo país, teve contato com artistas e intelectuais como Glauber Rocha, Torquato Neto, Orlando Senna, Caetano Veloso, Manuel Araújo, Eduardo Coutinho, Rui Guerra. Em Salvador, onde se instalou para concluir o curso de Filosofia na Universidade da Bahia, teve o seu primeiro contato mais profundo com a política e resistência à ditadura, ao entrar para as fileiras da militância político-cultural no Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes (UNE-BA).

Dirigiu mais de 20 filmes, entre eles “Romeiros da Guia” (1962), “O País de São Saruê” (1971), “O Espírito Criador do Povo Brasileiro” (1973), “O Itinerário de Niemeyer” (1973), “Quilombo” (1975), “José Lins do Rego” (1975), “O Evangelho Segundo Teotônio” (1984), “No Galope da Viola” (1990), “Conterrâneos Velhos de Guerra” (1991), e “Barra 68” (2000), entre outros, além de parcerias com diretores, como Eduardo Coutinho e Arnaldo Jabor.

O documentário “O País de São Saruê”, que em pleno “ano de chumbo” de 1971 e auge do ufanismo da ditadura retrata a miséria e o cotidiano de pobreza de lavradores e garimpeiros nas constantes secas nordestinas, com depoimentos reais, imagens do folclore, e músicas de Luiz Gonzaga e Ernesto Nazareth, ao mesmo tempo que encantou as melhores cabeças da época, foi rechaçado pela ditadura, que censurou o longa por inteiro, sem possibilidade de cortes, alegando que o filme “prejudicava a imagem do país”.

A censura causou revolta nos meios políticos e culturais do país e, ignorando a proibição e como um gesto de protesto, a comissão que organizava o Festival de Brasília selecionou o filme para a sua competição daquele ano.

O filme acabou sendo interditado no festival e substituído pelo documentário “Brasil bom de bola”, de Carlos Niemeyer, revoltando o público. Ao final, toda a movimentação em torno do filme acabou açulando ainda mais a repressão, e o Festival de Brasília foi suspenso por três anos.

Outro momento marcante e totalmente inserido na realidade política do país na carreira do cineasta aconteceu quando foi convidado por Eduardo Coutinho para ser assistente de direção em “Cabra Marcado para Morrer”.

Filmando em uma narrativa semidocumental a vida do líder camponês da Paraíba, João Pedro, assassinado em 1962, Eduardo Coutinho e sua equipe foram surpreendidos pelo golpe de 64. O local das filmagens, o engenho da Galileia, foi cercado por forças policiais. Sob a alegação de serem “comunistas”, toda a equipe de filmagem foi perseguida. Parte foi presa e outra parte conseguiu fugir.

Vladimir Carvalho foi encarregado de proteger dona Elisabete Teixeira, viúva de João Pedro, durante a dispersão do grupo.

Após conseguir deixar dona Elisabete a salvo em um subúrbio do Recife, depois de muitos sobressaltos e perrengues, o cineasta entra definitivamente na clandestinidade.

“Cabra Marcado para Morrer” só foi concluído 20 anos depois, reunindo alguns dos mesmos técnicos, nos mesmos locais e personagens reais para contar a história do líder camponês e a própria trajetória de resistência do filme.

Ao longo de sua carreira, Vladimir recebeu várias premiações, entre elas, no Festival de Berlim (1985), Festival Internacional de Cinema de Tróia (1985), VI Festival do Novo Cinema Latino-americano (1984), em Havana/Cuba; 13º Festival do Cinema Brasileiro de Gramado, FestRio, Festival de Cine Realidade (Paris/França), entre outros.

O diretor, que era irmão do também cineasta Walter Carvalho, também foi professor da Universidade de Brasília (UnB) por mais de duas décadas, e um dos fundadores do curso de cinema da Faculdade de Comunicação.

Também fundou a Associação Brasileira de Documentaristas, em 1994, e criou a Fundação Cinememória, que abriga seu extenso acervo de mais de 23 documentários, 5 mil livros, cartazes, fotos, além de equipamentos históricos do cinema, como a moviola usada por Glauber Rocha para editar “Terra em Transe” (1967).

Segundo a reitora da UnB, Márcia Abrahão, Vladimir Carvalho deixa um grande legado, “não só da sua produção cinematográfica, mas de seu olhar crítico sobre a ditadura militar, sendo um dos que resistiram àquele momento de muitas dificuldades para a UnB”, disse.

Em nota, o Ministério da Cultura também se manifestou sobre a morte do cineasta: “Um dos mais importantes documentaristas do país. Sua obra, voltada à celebração da cultura e da identidade nacional, foi marcada por fortes crenças sociais e se transformou em uma nova linguagem para o audiovisual brasileiro”.

O velório de Vladimir Carvalho deve acontecer no Cine Brasília, amanhã (25), em horário ainda a confirmar.

ANA LÚCIA

Fonte: https://horadopovo.com.br/vladimir-carvalho-uma-vida-dedicada-ao-cinema-brasileiro/