Morte de Niède Guidon chama à luta pela preservação do nosso patrimônio

Foto: Reprodução/Estadão –

Arqueóloga Niède Guidon faleceu, deixando um legado na Serra da Capivara. Suas descobertas revolucionaram a arqueologia e a história do Brasil

A morte, nesta quarta-feira, da arqueóloga e pesquisadora brasileira Niède Guidon, é um duro golpe à luta pela descoberta e preservação do patrimônio cultural e natural do Brasil, um desafio que ela tomou para sí, sem comparativos, e a isso dedicou toda sua vida acadêmica e até mesmo pessoal, até nos deixar, aos 92 anos de vida intensa.

Niède notabilizou-se diante do mundo por suas notáveis e transformadoras descobertas sobre a origem do Homem Americano e, em consequência disso, pela criação e reconhecimento do Parque nacional da Serra da Capivara, que a UNESCO, em 1991, declarou ser um  Patrimônio Cultural da Humanidade.

O extraordinário trabalho que Niède Guidon empreendeu, originalmente, nos inúmeros abrigos rochosos de São Raimundo Nonato, São João do Piauí e Canto do Buriti, levaram o mundo a conhecer mais de 300 sítios arqueológicos, a maioria consistindo em pinturas rupestres e murais datados de 50 mil anos anteriores aos tempos de hoje. Algumas dessas pinturas com mais de 25 mil anos de fixadas, fatos que mudariam as teorias sobre a presença dos humanos em território americano.

Suas descobertas, portanto, pelas análises e datações verificadas, evidenciadas nos artefatos encontrados no Parque Nacional da Serra da Capivara, estabeleceram uma enorme revolução, confirmando que foi ali que se deu a primeira presença dos seres humanos no Continente, desfazendo a crença, até então, de que entrada nas Américas por populações humanas teria se dado ao longo do Estreito de Bering.

Além da criação do Parque, em 1979, hoje formado por mais três municípios (Brejo do Piauí, João Costa e Coronel José Dias, todos desmembrados, a partir de 1992, dos três municípios originários), Niede Guidon também foi responsável pela criação da Fundação Museu do Homem Americano (FUMDHAM), pela implementação de políticas de preservação ambiental e cultural e pela luta contínua pela valorização do patrimônio histórico brasileiro.

Seu trabalho é reconhecido internacionalmente como um dos mais importantes da arqueologia sul-americana.

Aguerrida, corajosa, “briguenta”, como muitos a viam, Niede Guidon, desde o início de sua ousadia e de  seus trabalhos na Serra da Capivara, no final da década de 1970, enfrentou muitos desafios: o ceticismo da comunidade científica, a falta de recursos e o isolamento geográfico da região.

Ainda assim, persistiu.

Descobriu centenas de sítios arqueológicos, com pinturas rupestres e fósseis que apontam para uma presença humana no Brasil muito mais antiga do que se pensava. Suas descobertas questionaram teorias consolidadas sobre o povoamento das Américas. E em todos os seus monumentais esforços ganhou reconhecimento oficial.

Seu trabalho foi muito além das descobertas científicas, porque essa gigante arqueóloga também se dedicou à inclusão social das populações locais, formando equipes com moradores da região, gerando emprego, incentivando educação e desenvolvimento sustentável. Seu esforço ajudou a inserir o Piauí no mapa internacional da arqueologia, do turismo cultural e da preservação ambiental.

Nascida em Jaú, no interior de São Paulo, em 12 de março de 1933, filha de pai francês e mãe brasileira, Niede Guidon se formou em história na Universidade de São Paulo (USP), em 1959, indo em seguida para a França para lecionar, voltando ao Brasil em 1970, quando conheceu as pinturas rupestres de Coronel José Dias ( que até 1992 era um distrito de São Raimundo Nonato). Por suas descobertas, obteve o doutorado em Pré-História pela Universidade de Paris em 1975.

A morte de Niede Guidon deverá servir para uma reflexão em dois caminhos. Primeiro, para olharmos com atenção e zelo para  seu legado magistral, que enriquece a história, muda conceitos e crenças, e insere o Brasil de modo positivo no cenário mundial, como o fato de a UNESCO ter transformado Serra da Capivara num Patrimônio Cultural da Humanidade; no outro ponto de reflexão- que deveríamos todos assumir como dever obrigatório,  é olharmos para as riquezas culturais e naturais que o país ostenta, e que vêm sendo, ao longo de muitos anos, alvo de depredação, de destruição e descaso, com a prática de um assalto criminoso às reservas que ainda possuímos e que nos fazem gigantes diante do mundo.