No universo da tecnologia, onde a inovação é religião e a disrupção é mantra, uma pergunta ecoa pelos corredores das empresas de tecnologia: será que estamos programando um futuro verdadeiramente inclusivo? Os dados mais recentes do Censo de Diversidade da Brasscom revelam que 10,9% dos profissionais de TIC se identificam como LGBT+, com 57,5% considerando seu ambiente de trabalho inclusivo. Uma estatística que, à primeira vista, soa como sucesso, mas que esconde camadas complexas de uma realidade ainda em construção.
Baseados em mais de 20 mil respondentes de gigantes como Capgemini, CI&T, Cognizant e Totvs, esses números desenham o retrato de um setor em transformação, mas ainda refém de contradições. É como se o código da inclusão estivesse funcionando apenas pela metade – rodando sim, mas com bugs que precisam ser corrigidos.
“A área da tecnologia tem uma narrativa muito bonita de ser um espaço de inovação, de abertura, de meritocracia. Mas a realidade é bem mais complexa”, afirma Guilherme Pereira, diretor de Inovação, Programas e Experiências da Alura + FIAP Para Empresas. “Ainda existe muito preconceito velado, muita piada disfarçada de brincadeira, e uma expectativa de que a gente se molde ao ambiente.”
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Uma CEO que não se esconde
Para Carolina Cabral, CEO da Nimbi, a representatividade em posições de comando é fundamental para quebrar barreiras invisíveis. “Minha identidade como mulher lésbica influencia diretamente o jeito como lidero a Nimbi. Não é uma lente única, mas é uma lente potente que me faz olhar para pessoas, decisões e estratégias com mais empatia e intencionalidade”, explica.
A executiva reconhece os desafios enfrentados em sua trajetória. “Já enfrentei situações em que precisei dosar o quanto compartilhava sobre minha vida pessoal. Em alguns contextos de negócios, percebi um julgamento silencioso. Não hostilidade, mas aquela ‘pausa’ antes da próxima frase”, relata. “Com o tempo, aprendi que ser transparente sobre quem eu sou não só fortalece minha posição, como abre caminho para que outras pessoas também possam ser autênticas.”
“Comigo foi muito natural”
A experiência de Wilian Domingues, CIO da Tempo, ilustra uma abordagem diferente para lidar com a visibilidade. Para ele, tornar sua orientação sexual conhecida no ambiente profissional foi um processo orgânico, sem grandes marcos ou anúncios formais.
“Comigo foi muito natural. Não houve uma data ou momento específico. Isso aconteceu em conversas naturais sobre como foi o final de semana, onde foram viajar nas últimas férias e eu naturalmente introduzia o tema sobre com quem ia, onde fomos”, explica Domingues. “Fiz questão que isso não fosse um marco porque não faria sentido que isso se tornasse uma etiqueta atrelada a qualquer elemento profissional. Eu nunca fui cobrado mais ou menos sob esse aspecto.”
Diversidade que aumenta o faturamento
Carolina vê na diversidade uma estratégia de negócios. “Na Nimbi, autenticidade é um valor vivido, não um pôster na parede. Criamos um ambiente onde as pessoas não precisam vestir uma ‘fantasia profissional’ para trabalhar”, afirma a CEO.
Segundo ela, os resultados práticos são mensuráveis. “Um ambiente onde as pessoas se sentem seguras para ser quem são é um ambiente mais criativo, mais colaborativo e, acima de tudo, mais produtivo. Quando alguém não precisa gastar energia se escondendo, sobra espaço mental para inovar, resolver problemas e se conectar de verdade com os colegas. Isso tem impacto direto em indicadores como engajamento, retenção e performance.”
Domingues reforça essa perspectiva ao explicar como a diversidade na liderança impacta diretamente a inovação: “A verdadeira inovação vem quando as pessoas se sentem seguras para discordar, contribuir e arriscar. Isso só acontece num ambiente onde elas não são julgadas por quem são, mas respeitadas por como pensam e contribuem. Uma liderança que é abertamente diversa — seja LGBT+, negra, PCD — naturalmente ajuda a construir esse espaço mais plural.”
Por que sobram analistas e faltam diretores
Os dados da Brasscom mostram uma distribuição hierárquica reveladora: entre os profissionais LGBT+ do setor, 68,8% ocupam cargos de analista, 12,5% estão em posições de gerência e 10,1% atuam como coordenadores. A concentração em cargos operacionais sugere barreiras para ascensão a posições de liderança.
“Se olharmos para os cargos de liderança, vemos menos frequentemente a diversidade presente”, observa Pereira. “É muito difícil se imaginar pertencendo a um lugar quando você olha pra cima e não vê ninguém que se pareça com você.”
Para Domingues, que ocupa uma posição de liderança em tecnologia, a responsabilidade vai além das questões identitárias. “Todo mundo que ocupa um cargo ‘alto’ tem na minha visão três obrigações: o exemplo, a abertura ao diálogo e ética. Esses três elementos podem ser fundidos sobre a palavra responsabilidade. Note que sua orientação, credo, cor, sexo não influencia na responsabilidade.”
Essa falta de representatividade nas lideranças impacta não apenas as trajetórias individuais, mas também a cultura organizacional. Para Pereira, lideranças diversas geram mudanças sutis, mas importantes: “É sobre o tipo de conversa que começa a acontecer nas reuniões, sobre quem se sente à vontade para se posicionar.”
Carolina reforça a importância do exemplo: “Ser uma CEO visivelmente LGBT+ ajuda bastante. Diversidade não é só uma pauta de inclusão, é uma vantagem competitiva.”
Produtos melhores nascem de equipes diversas
A diversidade de identidade de gênero e orientação sexual tem reflexos diretos na qualidade das soluções tecnológicas desenvolvidas. Pereira argumenta que pessoas com diferentes histórias de vida trazem perspectivas únicas para os produtos.
“Uma pessoa que passou a vida tendo que ‘ler os ambientes’, medir palavras ou enfrentar preconceitos, desenvolve uma escuta mais atenta e uma capacidade enorme de enxergar o que está nas entrelinhas”, explica. “Se todo mundo no time pensa igual, tem as mesmas referências de vida e os mesmos filtros sociais, o resultado final vai ser previsível, limitado e, muitas vezes, excludente.”
Domingues destaca como a liderança inclusiva pode revelar talentos antes negligenciados: “Ocupar espaços e furar bolhas é algo complicado para pessoas que não representam o que chamam de normal, eu sempre fui um líder que trabalhei para que as pessoas conseguissem furar essas bolhas. Faço isso ouvindo-as, sendo imparcial, olhando e analisando o que realmente importa sob o aspecto do trabalho e dos entregáveis. Tirar a nevoa do preconceito permite que descubramos grandes talentos.”
O que as empresas estão fazendo (e o que ainda falta)
Para sustentar os avanços, as empresas do setor têm implementado diversas iniciativas. Segundo a Brasscom, destacam-se metas de captação com foco na representatividade LGBT+, cursos exclusivos em tecnologia, comitês de diversidade, treinamentos de conscientização e campanhas de visibilidade.
“Os dados que levantamos mostram que estamos avançando na construção de um setor mais diverso e inclusivo, mas sabemos que o trabalho não termina aqui”, destaca Roberta Piozzi, diretora de Parcerias e Projetos em Educação na Brasscom.
“Saiba que seu lugar é na liderança”
Para profissionais LGBT+ que almejam posições de comando, Carolina oferece conselhos práticos: “Primeiro: saiba que o seu lugar é na liderança, sim. Não se deixe convencer do contrário. Às vezes, a dúvida não é se somos capazes, mas se vamos ser aceitos.”
A CEO também destaca a importância das redes de apoio: “Busque mentorias, grupos de afinidade, comunidades tech com recorte LGBT+. A jornada fica mais leve (e mais rápida) quando você não caminha sozinha ou sozinho.”
A nova geração quer mais que posts no mês do orgulho
Para profissionais que estão ingressando no setor, Pereira identifica mudanças geracionais importantes, mas alerta para a necessidade de transformações estruturais mais profundas.
“As novas gerações estão chegando com menos medo e mais vontade de ocupar espaço”, observa. “Mas pra que essa autenticidade seja possível, as empresas precisam parar de achar que ‘diversidade’ é só fazer post no mês de junho.”
O executivo defende que a mudança real precisa ir além do discurso: “O que a gente precisa é de menos discurso bonito e mais prática concreta: processos seletivos inclusivos de verdade, políticas claras contra discriminação, espaço para diálogo aberto.”
Como quebrar a hegemonia
Carolina é direta ao identificar os obstáculos que ainda precisam ser superados: “Ainda temos uma bolha masculina, branca e cis hétero dominando as decisões em tech. Isso precisa ser quebrado com intencionalidade: metas de diversidade, acesso à educação de qualidade, inclusão nos processos seletivos e, principalmente, um ambiente onde ninguém precise ‘se adaptar’ para caber.”
Para ela, a mudança de perspectiva é fundamental: “O desafio não é encaixar pessoas diversas na cultura, é transformar a cultura para que ela abrace a diversidade como padrão.”
Domingues identifica dois aspectos cruciais para essa transformação: “Precisamos falar de dois aspectos: o primeiro sobre a atmosfera das empresas. Há um grupo de empresas que de fato tira do papel as políticas de inclusão e aqui vale para todo e qualquer público. Você pode ter uma pessoa CIS que é portadora de necessidades especiais e ela tem uma dificuldade enorme de furar a bolha também.”
Educação é a chave para furar todas as bolhas
A educação emerge como elemento central para acelerar as transformações. Pereira vê na formação continuada uma ferramenta poderosa para mudança de mentalidade: “Workshops, mentorias, programas de formação em diversidade e liderança inclusiva criam pequenos pontos de virada que, no conjunto, geram mudança cultural real.”
Domingues é categórico ao apontar a educação como fator determinante: “E sob o aspecto das pessoas. Nesse sentido eu só consigo ver a educação como a grande forma de furar as bolhas. Eu sei das dificuldades que nosso país coloca para as pessoas estudarem, mas eu estaria errado se eu comentasse que são outros fatores. Educação permite que você concorra a vagas de empresas inclusivas. Sem educação você não passa do analista de RH e não chega na entrevista.”
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Fonte: https://itforum.com.br/noticias/onde-estao-os-lideres-lgbt-na-tecnologia/