Por Aquiles Nogueira
Na era da transformação digital, poucos profissionais são tão estratégicos — e, ao mesmo tempo, tão pouco reconhecidos — quanto os técnicos de campo (Field Services). Eles são, muitas vezes, o único ponto de contato físico entre empresas de tecnologia e seus clientes. São eles que instalam, mantêm, configuram e reparam os ativos que sustentam a operação de milhares de empresas e milhões de usuários.
No entanto, à medida que a digitalização acelera, cresce também uma contradição no modelo de trabalho desses profissionais. Enquanto as empresas evoluem tecnologicamente, muitas ainda operam sob estruturas de contratação que fragilizam o elo mais crítico da jornada do cliente: o ser humano que materializa a entrega do serviço.
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O técnico field como vitrine da experiência do cliente
No momento da entrega, da manutenção ou da resolução de um problema, o técnico não representa apenas a empresa — ele é a empresa. Sua postura, conhecimento, capacidade de resolver, de comunicar e de gerar confiança impacta diretamente a percepção da marca, a satisfação do cliente e, consequentemente, os indicadores de renovação de contratos e fidelização.
Não há transformação digital, automação ou Inteligência Artificial que substitua a importância desse papel. Ainda que IoT, monitoramento remoto e automação sejam aliados poderosos, é no campo — na interação humana — que muitos problemas se resolvem e a credibilidade se constrói.
Por isso, as empresas que realmente valorizam a experiência do cliente já entenderam que a capacitação, o desenvolvimento comportamental e a autonomia operacional dos técnicos Field são investimentos estratégicos, e não custos operacionais.
A uberização dos serviços de tecnologia: flexibilidade com custo social
O avanço da transformação digital trouxe consigo uma mudança profunda na forma como os serviços são estruturados. Modelos baseados em plataformas, que conectam empresas e profissionais, ganharam força e escalaram de forma agressiva. Surgiu, então, a chamada “uberização” dos serviços de tecnologia, com características muito claras:
· Descentralização da força de trabalho;
· Contratações por demanda, com pagamentos por atendimento ou serviço executado;
· Baixa exigência formal de vínculo, oferecendo flexibilidade para ambas as partes;
· Pressão intensa por redução de custos operacionais.
Este modelo, embora ofereça ganhos expressivos de capilaridade e agilidade, tem efeitos colaterais preocupantes. O primeiro deles é a comoditização do serviço técnico, na medida em que o preço se torna muitas vezes o principal — quando não o único — critério de seleção.
Além disso, observa-se uma erosão na qualificação dos profissionais, fruto da falta de investimentos estruturados em treinamento, desenvolvimento de habilidades e melhoria contínua. O mercado, então, se enche de profissionais que operam na lógica do volume, e não na excelência.
Pejotização e os riscos jurídicos: o fio da navalha
Por trás da uberização, cresce a pejotização do trabalho no setor de tecnologia. Contratar técnicos como pessoas jurídicas, eliminando vínculos empregatícios, tornou-se prática comum, especialmente em serviços de campo e suporte.
Se, por um lado, este modelo proporciona flexibilidade, redução de encargos e aumento da capilaridade, por outro, ele caminha cada vez mais próximo da linha tênue que separa a legalidade da precarização.
O tema ganhou ainda mais relevância com os recentes julgamentos do STF, que vêm redefinindo os limites da terceirização, da contratação de autônomos e do uso de plataformas.
· A decisão sobre a ADPF 324 e o RE 958252, que permitiu a terceirização irrestrita, abriu espaço para contratações mais flexíveis, mas não blindou empresas contra o reconhecimento de vínculo empregatício quando configurados os elementos da relação de trabalho (pessoalidade, subordinação, habitualidade e onerosidade).
· Mais recentemente, o STF começou a firmar entendimento, em casos envolvendo plataformas como Uber, 99 e iFood, de que, quando há subordinação algorítmica, controle de jornada ou dependência econômica, pode haver sim vínculo de emprego — algo que acende um alerta importante também para o setor de TI.
O risco jurídico não é mais abstrato. Ele é real, presente e crescente. Empresas que operam sob o modelo de contratação massiva de técnicos via pessoa jurídica, sem uma estrutura mínima de compliance trabalhista, estão expostas não apenas a passivos bilionários, mas também a danos reputacionais severos.
O futuro dos field services: entre valorização e responsabilidade
O setor de tecnologia precisa enfrentar um dilema urgente: como conciliar flexibilidade operacional com responsabilidade social e jurídica?
A resposta passa, inevitavelmente, por uma revisão profunda dos modelos de gestão de pessoas. É possível — e necessário — criar modelos híbridos, que combinem:
· Contratações flexíveis, mas com critérios rigorosos de compliance trabalhista;
· Programas robustos de desenvolvimento técnico e comportamental;
· Investimentos em tecnologia de suporte ao trabalho de campo, que ampliem a autonomia e a capacidade de resolução dos técnicos;
· Modelos de remuneração que valorizem a qualidade da entrega, e não apenas o volume de atendimentos.
Empresas que entenderem que a experiência do cliente começa — e muitas vezes termina — na performance do técnico Field, sairão na frente. E, nesse contexto, adotar modelos de trabalho que equilibrem eficiência, responsabilidade e sustentabilidade não é mais uma escolha. É uma questão de sobrevivência e diferenciação no mercado.
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Fonte: https://itforum.com.br/noticias/tecnicos-field-uberizacao-desafios-pejotizacao/