A senadora Damares Alves (Republicanos-DF) deve retornar ao arquipélago do Marajó, no Pará, no próximo dia 22 de maio, liderando uma comitiva de parlamentares com o objetivo de “constatar, com os próprios olhos”, situações de exploração sexual de crianças e adolescentes. A viagem acontece em meio a novas denúncias e revelações sobre o programa Abrace o Marajó, lançado por Damares em 2020, quando era ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos no governo de Jair Bolsonaro (PL).
Segundo informações obtidas com exclusividade pelo portal UOL, o programa, que teve como justificativa combater supostas violações de direitos humanos na região, abriu brechas para grilagem de terras da União, favorecimento a igrejas evangélicas — especialmente a Assembleia de Deus — e conflitos fundiários com populações tradicionais da região. Apesar da previsão de um investimento de até R$ 1 bilhão, nenhuma ação concreta de enfrentamento à violência sexual infantil foi executada.
Durante o programa, foram emitidos mais de 400 TAUS (Termos de Autorização de Uso Sustentável), que permitem a ocupação de terras públicas, abrangendo cerca de 50 milhões de m². Em muitos casos, os beneficiários sequer sabiam a extensão da área atribuída. Um exemplo é o ribeirinho Jocival Assunção, que recebeu 3 milhões de m² e viu, ao lado de sua casa, a construção de uma igreja da Assembleia de Deus, erguida em terreno “doado” informalmente pela família. As terras, no entanto, seguem pertencendo à União e não podem ser transferidas legalmente.
A distorção no uso dos TAUS chamou a atenção de especialistas e do atual governo. Dados obtidos via Lei de Acesso à Informação revelam que o tamanho médio dos terrenos concedidos pelo programa aumentou 132% em relação ao recorde anterior, registrado em 2013. A advogada Patrícia Menezes, ex-coordenadora da Amazônia Legal na SPU, afirma que os instrumentos foram usados de maneira “irregular” e alerta para os riscos de “improbidade administrativa e crimes eleitorais” na gestão do patrimônio público.
“Utilizar TAUS para implantar igrejas evangélicas no Marajó é absolutamente irregular, e deve ser apurado considerando os riscos de improbidade administrativa na gestão do patrimônio público federal”, afirmou.
Além das emissões irregulares, as ações do programa ocorreram em cidades como Bagre e Oeiras do Pará sem registro oficial de visitas técnicas dos órgãos responsáveis. Em Oeiras, foram emitidos 160 TAUS com a mesma coordenada geográfica — um erro que revelou a fragilidade dos controles. Algumas áreas autorizadas sobrepunham-se a assentamentos da reforma agrária, o que havia motivado, ainda em 2022, a suspensão dos processos pelo governo federal.
Outro ponto polêmico envolve a empresa Biotec Amazônia, parceira do Abrace o Marajó e que tem como conselheiro Paulo Bengtson, primo da senadora e pastor da Igreja do Evangelho Quadrangular. Damares negou qualquer participação na escolha da empresa e atribuiu as emissões de TAUS exclusivamente à Secretaria do Patrimônio da União (SPU), alegando que o programa era “descentralizado”.
A atuação da Assembleia de Deus durante o programa também levanta suspeitas. Reuniões de regularização fundiária ocorreram dentro de templos da igreja, e pelo menos dois TAUS visitados pela reportagem beneficiaram diretamente construções religiosas. Em Bagre, o templo central da Assembleia foi palco da posse do prefeito Clebinho Rodrigues (PSD) e de todos os vereadores da cidade em 2024. O prefeito, que também preside a Associação dos Municípios do Arquipélago do Marajó, cancelou entrevista previamente agendada com a reportagem.
A senadora Damares, que enfrenta um processo do Ministério Público Federal por disseminação de fake news — após alegar que meninas marajoaras eram exploradas sexualmente por não usarem calcinhas e por terem os dentes arrancados — estendeu o convite para a nova viagem ao Ministério da Justiça e ao Ministério dos Direitos Humanos. Segundo sua assessoria, não houve resposta.
O atual governo Lula afirma haver “fortes indícios de irregularidades” nas emissões feitas durante o Abrace o Marajó e prometeu investigar os casos. O Ministério da Gestão confirmou que “não houve ação” de regularização fundiária em Bagre no período investigado, embora termos tenham sido emitidos.
Para especialistas, a concessão dos TAUS foi distorcida e desviada de sua função original, concebida no governo Lula entre 2004 e 2008 para garantir reconhecimento territorial a populações ribeirinhas. “Era como dizer: ‘Governo, eu existo, eu estou aqui’”, explica Carlos Augusto Pantoja Ramos, da Fetagri.
Hoje, ribeirinhos como Antônio Mirail, presidente do sindicato de trabalhadores rurais de Bagre, relatam ameaças de expulsão e disputas com fazendeiros que registram áreas sobrepostas a territórios já ocupados. Em um caso recente, uma fazenda de 33 mil hectares foi registrada sobre terras com TAUS emitidos pelo programa de Damares. Segundo relatos, famílias beneficiárias da reforma agrária têm sido pressionadas por supostos proprietários que alegam direito à terra por meio do CAR (Cadastro Ambiental Rural).
“Eu me senti na época do descobrimento do Brasil. De Pedro Álvares Cabral, que chegou aqui e disse ‘essa terra é minha’, e os índios tiveram de sair”, resume Ronaldo Coelho, servidor do Incra, ao relatar a reação das comunidades diante da insegurança fundiária.
Enquanto isso, Damares se prepara para retornar ao Marajó com discurso de denúncia e promessa de retomada de atenção à região. Mas agora, cercada por investigações e questionamentos sobre o verdadeiro impacto de sua atuação.
Fonte: https://agendadopoder.com.br/damares-alves-explorou-fake-news-para-beneficiar-igrejas-evangelicas-de-marajo-com-programa-que-gerou-suspeitas-de-grilagem/