Berço da cultura e história natalense, o bairro da Ribeira guarda em suas famosas ruas relatos, memórias e saudades. O local, que foi palco de momentos históricos e casa de grandes nomes que ecoam pela cidade até hoje, como Câmara Cascudo e Juvino Barreto, foi se encaixando em um espaço de abandono. Ou melhor, quase.
O que mantém a Ribeira viva está voltado ao que se tem de mais precioso quando se trata de cultura: a memória. De forma sutil, ao andar pelo bairro, é possível perceber que certos locais ainda se encontram “em pé”, mesmo que não com a frequência do público de antes, mas ainda guardam suas histórias, passadas de pessoa para pessoa. A Ribeira resiste pela memória do povo.
Rodeado pelo mundo da dança, com a Capitania das Artes, e pelo mundo literário do Instituto Câmara Cascudo, um pouco mais para baixo, próximo à praça Augusto Severo, se encontra em uma esquina o que hoje é a memória da comunicação potiguar. Em um único lugar, encontram-se os três pilares do jornalismo no Rio Grande do Norte: a história, responsabilidade e memória. O Museu da Imprensa Eloy de Souza.
Inaugurado no dia 13 de novembro de 2003, o museu, intitulado inicialmente como Museu da Imprensa do Rio Grande do Norte, teve o nome do jornalista, político e ex-diretor do Diário Oficial Eloy Castriciano de Souza acrescido em 2004.
Atualmente, o espaço é vinculado ao Departamento Estadual de Imprensa (DEI) e consta em seu acervo equipamentos voltados para a impressão e edição de jornais e livros, sendo a maior parte da coleção utilizada na produção das primeiras impressões do Jornal A República, onde tudo começou. Não apenas para o início da história do jornalismo no RN, mas também para quem cresceu e deu a vida pelo lugar, como Valdeci.
O homem das máquinas
Aos 64 anos, Valdeci Correia aparenta ser um homem tímido no dia-a-dia, à primeira vista. Mas a partir do momento em que ele começa a falar de sua vida no museu, tudo muda. São histórias e mais histórias em sequência, sem parar, sobre máquinas de impressão, colegas de trabalho, jornais e do quanto ele aprendeu cada detalhe do conserto dos equipamentos. Com a bagagem, é claro que Valdeci não teria iniciado seu trabalho há pouco tempo.
Com empolgação, ele relata que sua vida mudou de rumo ainda pequeno quando seu pai, vigia do jornal A República, percebeu que ali seria uma oportunidade para o filho ser vendedor de jornal. “Eu nem estudava, quando eu comecei a estudar eu já tinha 14 anos. Por ser uma pessoa já alto e uma idade mais elevada, fizeram vários testes comigo e eu já entrei no terceiro ano na escola do estado. Aí eu vendia jornal, trazia o lucro de manhã, levava o jornal e saía daqui para a cidade da Esperança, Bom Pastor, Quintas, vendendo jornal”.
Em seguida, Valdeci foi mudando de função. Saiu das vendas e passou a servir café. Depois, aprendeu a fazer serviços de acabamento, com nota fiscal, dobrar papel para fazer as páginas de livros e serviço de limpeza. Mas para ele, isso nunca foi um problema. Pelo contrário, ele via como uma forma de ganhar experiência e ser notado.
“Eles falavam assim: ‘você vai ficar trabalhando aqui no serviço de acabamento, mas se alguém chamar você para limpar uma máquina, você vai’. Eu sabia como era que limpava uma máquina, se suja tudo. Aí eu digo, estou aqui para trabalhar. Nisso, tinha serviço de manhã, de tarde, de noite, eu trabalhava no turno do dia, limpando as máquinas”, comenta.
Foi assim, em meio a tantas funções, que seu Valdeci se tornou uma das peças principais para o funcionamento do Jornal. Descobriu sua paixão pelas máquinas e do quanto poderia ser economizado ao aprender como consertar os equipamentos. Algo que ele se orgulha e faz até hoje, mesmo após o fechamento do jornal. Durante a visita ao museu, é possível ver todas as máquinas funcionando, graças a experiência de Valdeci.
“Eu trabalho com serviço de manutenção das máquinas dentro do museu porque esse museu é um museu vivo. Tem a máquina, tem o material. Ainda tenho eu que trabalho com as máquinas e tenho conhecimento de amigos que trabalharam comigo na máquina”, diz.
Um lugar de resistência e memória
Do outro lado do museu está a supervisora Rosane Macedo que, assim como Valdeci, também iniciou os trabalhos na época em que o jornal A República funcionava, na parte administrativa. Ela conta que após o jornal fechar, o espaço ficou abandonado, já que novas máquinas foram chegando para fazer a impressão do Diário Oficial do Estado (DOE) e os equipamentos mais antigos foram caindo em desuso. “Era um depósito, vamos dizer, todo o maquinário que não funcionava mais”.
Em 2004, conta Rosane, o museu começou a ter forma definitiva. “Chegou aqui um diretor, o seu Flávio Lisboa, e vendo esse depósito, disse, ‘não, eu vou dar uma utilidade a isso aqui’. Ele mandou fazer uma limpeza, mandou revitalizar todas as máquinas, consertar, tinham funcionários que já tinham trabalhado aqui na época do auge da empresa, e sabiam manusear com as máquinas, então, ele abriu esse espaço”, afirma.
A supervisora confirma que a criação do museu foi uma ótima ideia para preservar a memória da imprensa oficial do Estado. Em 1º de julho de 1889, Pedro Velho, líder do Partido Republicano no RN, criou o jornal A República para divulgar as ideias do partido. Com a eleição do político em novembro do mesmo ano, o jornal passou a ser oficial, com a divulgação de atos, decretos, portarias, tudo ligado ao governo do Estado. A República funcionou até a década de 1995.
Com o fechamento do jornal, o local passou a imprimir apenas os exemplares do Diário Oficial até a pandemia de Covid-19. Os funcionários foram para casa, e o documento passou a ser produzido apenas de forma online. Hoje em dia, o DOE deixou de ser impresso definitivamente, com a produção de poucos exemplares apenas para arquivamento.
Em relação ao acervo dos exemplares do jornal, Rosane relata que, na época em que A República deixou de circular, todo o material foi guardado. Com a produção quase que diária do DOE e os exemplares que também precisavam ser guardados, os exemplares do jornal foram encaminhados para o Arquivo Público do Estado. Com a chegada de fortes chuvas em Natal, grande parte do acervo foi molhado.
“Houve um problema de uma época de muita chuva aqui em Natal e aquelas caixas ficaram empilhadas lá no local. Uma vez um historiador amigo foi lá, fez uma foto e publicou. Foi quando eu vi a caixa toda molhada e desmanchada. Então, grande parte do acervo se perdeu. O pouco que ainda resta continua no Arquivo Público, que hoje é ali por trás daquela fábrica de balas, o Sam’s. É pouca coisa, Muitos estão em péssimo estado de conservação”, lamenta.
Apesar das perdas, o museu se desenvolveu e tem visitas frequentes. As divulgações passaram a ser não só pelo boca a boca, mas também pelas redes sociais, além das parcerias com universidades, que contribuíram para o crescimento do acervo. No entanto, a supervisora questiona a falta de engajamento de jornalistas potiguares e estudantes da área.
“Hoje [o movimento] é muito grande. Infelizmente, existem poucas visitas de jornalistas e estudantes de jornalismo, de fato. Aqui eu recebo visitas da turma de jornalismo da Paraíba todo ano. A professora é potiguar. Então, todo ano ela traz a nova turma dela pra conhecer o museu e é uma interação muito grande”, conta.
Com todo o tempo de trabalho e das coisas que evoluíram no local e nos arredores, Rosane afirma que considera o museu um espaço de resistência. “Acho que tem três locais de resistência aqui: o Colégio Salesiano, o departamento (DEI), que é o prédio em si, e o museu e a Caixa Econômica Federal. O resto está sendo só memórias. Está ficando deserto. Você vê muitos prédios históricos que estão se desmanchando. Tem arquiteturas aqui, na Rua Chile, que eram verdadeiras obras de arte e quando menos acontece, desaba tudo. É difícil”.
Fonte: https://agorarn.com.br/ultimas/museu-eloy-souza-memoria-imprensa-ribeira/