Quando Ariano Suassuna decidiu criar, em 1970, o Movimento Armorial, não apenas construiu um caminho artístico, mas forjou um elo profundo entre a arte popular e erudita brasileira, fundindo-as de maneira tão única que, ao longo de cinco décadas, a sua obra se tornou um espelho da complexidade e da beleza da nossa história. E é exatamente esse legado que a Mostra Armorial 50, em cartaz na Pinacoteca do Estado do Rio Grande do Norte, traz à tona desde 1º de novembro. A exposição segue até 2 de fevereiro de 2025 em Natal.
Celebrando meio século de existência do movimento que reconfigurou a arte brasileira, a exposição é mais do que uma retrospectiva de um movimento artístico. Ela é uma jornada sensorial e intelectual, onde o visitante se vê imerso nas cores vibrantes e nos ritmos pulsantes que definem a identidade de um Brasil vasto e múltiplo.
Com cerca de 140 obras de alguns dos maiores nomes da arte armorial, como Ariano Suassuna, Gilvan Samico, Francisco Brennand, J. Borges, e Zélia Suassuna, a mostra revela uma arte que dialoga com as raízes populares, mas que também flerta com a erudição, criando uma tensão criativa que se estende pela pintura, pela música, pela dança e pelas artes gráficas.
A exposição Armorial 50
Idealizada e coordenada pela produtora Regina Rosa de Godoy, a Mostra Armorial 50 tem percorrido o Brasil desde 2021, em uma jornada que começou com um simples encantamento. “Em 2019, eu estava em Curitiba e fui convidada para assistir a um show do Grupo Rosa Armorial. A música era maravilhosa, e eu não conhecia aquela sonoridade. A partir daí, comecei a pesquisar mais sobre o movimento e logo descobri que ele faria 50 anos em 2020. Foi aí que a ideia da exposição começou a brotar”, conta Regina, refletindo sobre o nascimento de um projeto que não apenas celebra um movimento artístico, mas preserva um pedaço essencial da nossa cultura.
E é justamente sobre esse patrimônio que a exposição nos fala. O Movimento Armorial nasceu da vontade de Suassuna de estabelecer uma arte genuinamente brasileira, uma arte que não fosse refém das correntes europeias, mas que carregasse, com orgulho, a herança indígena, negra e portuguesa que formam o cerne da nossa identidade cultural. A arte armorial não é só pintura ou escultura, é um modo de viver, um olhar sobre o cotidiano, sobre as festas populares, sobre a poesia do cordel, sobre o som do maracatu e o batuque do cavalo-marinho. É a junção de todas essas forças, com sua energia ancestral, que cria um espaço estético e político, capaz de representar a diversidade cultural de um Brasil que, em sua grandeza territorial e em sua riqueza de vozes, nunca pode ser contido em um único lugar, em um único estilo.
Ao longo da exposição, o público tem a oportunidade de entrar em contato com obras de artistas fundamentais para o movimento, incluindo um acervo que Ariano Suassuna adquiriu para a Universidade Federal de Pernambuco, onde a arte armorial encontrou um abrigo acadêmico e vital. A curadora Denise Matar fez um corte cirúrgico na seleção das obras, trazendo para a exposição peças essenciais, como as iluminogravuras de Suassuna, os quadros e xilogravuras de Gilvan Samico, e os figurinos de Francisco Brennand para a primeira montagem de O Alto da Compadecida, de 1969.
A Onça Caetana também é uma das figuras mais emblemáticas do movimento Armorial, sendo encontrada em diversas obras de diferentes formas. A estátua da onça, localizada no início da exposição, foi colocada lá estrategicamente. Idealizada ainda na infância do autor, a obra marca um ponto crucial no início da história de Suassuna – logo após a morte de seu pai por motivos políticos – e é por isso que ela foi escolhida para dar as boas-vindas ao público.
Representando a morte, a onça deriva de uma lenda no nosso nordeste, em que “Caetana” é conhecida tanto como uma onça, quanto como uma mulher. A obra presente na exposição é uma representação de uma das versões da onça feitas Suassuna. A peça foi confeccionada em Belo Horizonte pelos bonequeiros Agnaldo Pinho, Carla Grossi, Lia Moreira e Pedro Rolim.
A exposição não é apenas uma viagem no tempo, ela é um convite para entender as múltiplas dimensões da arte armorial. Como explica Regina, “a arte armorial expressa essa junção harmoniosa entre a cultura popular e a erudita, e por isso se manifesta em muitas formas de arte. Na dança, temos o Grial, uma fusão entre a tradição nordestina e o balé clássico. Na música, o movimento armorial é representado por uma sonoridade única, criada por Antônio Madureira e outros compositores que continuam a se inspirar na sonoridade original.”
A arte armorial também é sobre família. A exposição dedica um espaço para a relação íntima e criativa que Ariano Suassuna manteve com sua esposa Zélia Suassuna e com seu filho Manuel Dantas Suassuna. Como Regina revela: “Temos uma sala que exibe o trabalho da família de Ariano, incluindo peças de Zélia e Manuel, e isso não é apenas uma homenagem à sua obra, mas também à sua convivência criativa”.
Ao percorrer as salas da mostra, é impossível não sentir a força de um Brasil profundo, vibrante, onde a ancestralidade se mistura com a modernidade, e a arte popular se refina na erudição. “O movimento armorial não é de Pernambuco, é brasileiro”, nos lembra Regina em suas palavras, imortalizando a essência da proposta de Suassuna, que sonhava com uma arte que representasse, em suas múltiplas facetas, a vastidão do território brasileiro. Cada estado, cada região, tem suas próprias versões da arte armorial, seja por meio das danças, das músicas ou das imagens criadas pelos artistas.
O impacto dessa exposição no público jovem, como revela Regina, é palpável: “Quando os jovens veem a arte armorial, eles não apenas conhecem a nossa história, mas também se conectam com a identidade do Brasil. Em cada visita, cada um leva consigo uma semente, que reverbera em sua própria compreensão do que significa ser brasileiro”.
A Mostra Armorial 50 é uma reafirmação da identidade cultural do Brasil. Uma identidade que, como Ariano Suassuna acreditava, precisa ser reconhecida e valorizada em sua pluralidade, sua ancestralidade e sua modernidade.
Fonte: https://agorarn.com.br/ultimas/pinacoteca-potiguar-exposicao-armorial/