50 anos da “Revolução dos Cravos”, por Raul Carrion

“Os cravos se tornaram o símbolo da Revolução de Abril de 1974 porque alguém que trazia nas mãos um ramo de cravos vermelhos, os distribuiu aos soldados, que os colocaram nos canos de suas armas”

RAUL CARRION (*)

Em 25 de abril de 1974 – 48 anos após a instauração de uma ditadura fascista em Portugal e depois de décadas de luta do povo português –, eclodiu+ a chamada Revolução dos Cravos, que abriu caminho para a redemocratização do país e acelerou a libertação das colônias portuguesas.

Os cravos se tornaram o símbolo da Revolução de Abril de 1974 porque alguém que trazia nas mãos um ramo de cravos vermelhos, os distribuiu aos soldados, que os colocaram nos canos de suas armas. Logo, as floristas da Baixa repetiram esse gesto, que se generalizou. Por isso, essa revolta militar tornou-se conhecida como a Revolução dos Cravos…

O levantamento foi liderado pelo Movimento das Forças Armadas (MFA)– criado em 1973 e formado na sua maior parte por capitães, que através de sua participação na guerra colonial compreenderam o caráter opressor dessa guerra e do seu governo. O Programa de Ação do MFA pode ser sintetizado em três palavras: “Democratizar, Descolonizar, Desenvolver”.

A senha para o início da rebelião foi a transmissão pela rádio Renascença, às 0h20 do dia 25 de abril, da canção Grândola, Vila Morena, que estava proibida pela ditadura, sob a alegação de que fazia alusão ao comunismo…

A adesão massiva da população à rebelião – selando a aliança Povo-MFA – transformou o levantamento militar em Revolução e foi decisiva para a derrubada do regime, que algumas horas depois capitulou. Ao render-se no final do dia, o chefe do governo fascista, Marcello Caetano, colocou como condição que o poder fosse entregue ao General António de Spínola, ex-governador militar de Guiné-Bissau, que em março de 1974 havia sido afastado do Estado-Maior das Forças Armadas, por defender uma solução negociada para a luta de libertação das colônias portuguesas.

As únicas vítimas do levantamento militar foram 4 mortos e 45 feridos, baleados por agentes da Direção Geral de Segurança (DGS) em Lisboa.

A JUNTA DE SALVAÇÃO NACIONAL

Uma vez derrubado o regime fascista, os capitães vitoriosos entregaram o poder à uma Junta de Salvação Nacional, formada por três generais do Exército, um general e um coronel da Força Aérea, um capitão-de-mar-e-guerra e um capitão-de-fragata da Marinha, tendo como Presidente o General António Spíndola.

Foram a extintas a polícia política (PIDE/DGS) e a censura. Foi estabelecido um cessar fogo nas colônias e iniciado o processo de negociações com os movimentos insurgentes, visando pôr fim à guerra colonial. Os sindicatos e os partidos foram legalizados. Os presos políticos foram libertados e os líderes da oposição que se estavam no exílio puderam retornar.

Dias depois, pela primeira vez em muitos anos, o 1º de Maio foi celebrado nas ruas, em plena liberdade. Em Lisboa, participaram cerca de 500 mil pessoas.

Em 15 de maio de 1974, o General Spíndola assumiu formalmente a presidência do governo provisório e nomeou Adelino da Palma Carlos, político de sua confiança, como 1º Ministro, o que desagradou o MFA.

Em 8 de julho, as propostas de Palma Carlos de reforçar os poderes presidenciais e de adiar as eleições foram derrotadas no Conselho de Estado e ele optou pela renúncia, sendo substituído pelo Coronel Vasco Gonçalves, próximo ao PCP.

Na questão colonial, o General Spíndola defendia uma espécie de Commonwealth (Comunidade) portuguesa, mas a sua proposta foi derrotada e em 27 de julho ele foi obrigado a proclamar o direito das colónias à autodeterminação e à independência.

Crescentemente isolado, em setembro Spíndola foi à televisão e apelou para que a “maioria silenciosa do povo português reaja contra o comunismo”, convocando os seus adeptos para uma grande manifestação em Lisboa, no dia 28 de setembro, com o objetivo de decretar o estado de sítio e concentrar o poder em suas mãos.

Diante dessa clara tentativa de golpe, as forças populares e de esquerda – sob a liderança do PCP e do PS e com o apoio dos militares progressistas – montaram barricadas nos principais acessos de Lisboa e impediram a chegada dos apoiadores de Spindola, frustrando o golpe. Centenas de conspiradores foram presos e Spíndola renunciou, sendo substituído pelo General Francisco da Costa Gomes que manteve o Coronel Vasco Gonçalves como 1º Ministro.

Em 11 de março de 1975, com a ingerência direta da CIA, foi articulado um novo golpe contra o governo revolucionário, liderado por militares conservadores. Novamente o povo ergueu barricadas e com o apoio de militares progressistas derrotou o golpe. Spínola e outros golpistas militares e civis fugiram para a Espanha, onde foram acolhidos por Franco.

Com a derrota da contrarrevolução, abriu-se um período de radicalização e de avanços.

Foi criado o Conselho da Revolução e decretada a nacionalização dos sete mais importantes grupos bancários de Portugal. Seguiu-se a nacionalização de seguradoras, siderúrgicas, fábricas de cimentos, a Companhia União Fabril (186 fábricas), a Lisnave, etc.

Comissões de fábricas se espalharam por toda parte e os trabalhadores ocuparam grande número de empresas. Em torno de mil empresas foram nacionalizadas, sofreram intervenção ou passaram a ser geridas pelos trabalhadores.

A reforma agrária se aprofundou e foi criada uma nova legislação para viabilizar a ocupação das grandes propriedades, o que ocorreu principalmente no Alentejo, onde o PC era mais forte.

A Revolução dos Cravos também trouxe grandes avanços sociais e econômicos, como o salário mínimo nacional, os subsídios de férias, o salário-desemprego, a licença maternidade, o Serviço Nacional de Saúde, geral e gratuito. Em 1975, o salário mínimo subiu de 3.300 para 4.000 escudos, um aumento de mais de 20%. A parcela dos salários na renda nacional – que em 1974 havia alcançado 48% – passou em 1975 a representar 57%.

Também nesse período foi reconhecida a independência das colônias portuguesas, a começar por Guiné-Bissau (24.09.74), seguida por Moçambique (25.06.75), Cabo Verde (05.07.75), São Tomé e Príncipe (12.07.75), Angola (11.11.75) e Timor Leste (28.11.75). Esta última – invadida pela Indonésia logo após a sua independência, com o apoio aberto dos Estados Unidos – só conquistou a sua independência definitiva em 2002.

UMA CONSTITUIÇÃO ANTIFASCISTA, ANTIIMPERIALISTA E SOCIALISTA

Foi nesse contexto que ocorreram, em 25 de abril de 1975, as eleições para a Assembleia Constituinte, tendo o PS sido o mais votado (37,9%), seguido pelo PPD (26,4%), PCP (12,5%), CDS (7,6%) e MDP (4,1%). Os demais partidos obtiveram pequenas votações.

Refletindo o ascenso revolucionário, apesar das divisões que começavam a aparecer entre as forças populares, foi aprovada uma Constituição avançada, antifascista, anti-imperialista e declaradamente socialista.

No seu preâmbulo ela declarava: “A Assembleia Constituinte afirma a decisão do povo português (…) de estabelecer os princípios basilares da democracia (…) e de abrir caminho para uma sociedade socialista”.

O que é reafirmado nos seus artigos 1º, 2º e 9º: “(…) empenhada na sua transformação numa sociedade sem classes (…) tem por objetivo assegurar a transição para o socialismo mediante (…) o exercício democrático do poder pelas classes trabalhadoras. (…) São tarefas fundamentais do Estado: (…) c) Socializar os meios de produção e a riqueza (…) e abolir a exploração e a opressão do homem pelo homem.”

Ao mesmo tempo que garantia as mais amplas liberdades democráticas, ela afirmava: “Não são consentidas (…) organizações que perfilhem a ideologia fascista” (art. 46). E o seu artigo 163, fulminava o fascismo: “perdem o mandato os Deputados que (…) sejam judicialmente condenados por participação em organizações de ideologia fascista.”

O seu artigo 81 explicitava as principais tarefas do movimento revolucionário: “Incumbe prioritariamente ao Estado: (…) Eliminar e impedir a formação de monopólios privados, através de nacionalizações ou de outras formas (…) Realizar a reforma agrária; (…) instauração de um sistema de planeamento democrático; (…) Impulsionar o desenvolvimento das relações de produção socialistas”.

No que se refere às Relações Internacionais, o texto constitucional, em seu artigo 7º, proclamava: “Portugal preconiza a abolição de todas as formas de imperialismo, colonialismo e agressão, o desarmamento geral, simultâneo e controlado, a dissolução dos blocos político-militares e o estabelecimento de um sistema de segurança coletiva, com vista à criação de uma ordem internacional capaz de assegurar a paz e a justiça nas relações entre os povos. (…) Portugal reconhece o direito dos povos à insurreição contra todas as formas de opressão, nomeadamente contra o colonialismo e o imperialismo”.

O GOLPE CONTRARREVOLUCIONÁRIO

Essa radicalização da Revolução dos Cravos era inaceitável para os Estados Unidos e para os seus aliados europeus. Isso fez os EUA cogitarem a expulsão de Portugal da OTAN e a apoiar uma eventual independência dos Açores, onde tinham importantes instalações militares.

Da mesma forma, os sociais-democratas alemães e franceses passaram a trabalhar para fortalecer o PS – inclusive lhe repassando importantes recursos financeiros –, pressionando-o a se afastar do PCP, para evitar o aprofundamento do processo revolucionário.

Frente à fragilidade da direita em Portugal, essa tática da social-democracia europeia também foi adotada pelos EUA, que passaram a ver o PS como “um mal menor”, mais moderado e mais confiável. Como resultado, o PS aproximou-se das forças políticas de centro e assumiu uma postura cada vez mais anticomunista, buscando tornar-se palatável ao imperialismo e à direita.

Assim, a unidade do campo revolucionário fraturou-se, seja entre o PS e o PCP, seja entre as lideranças militares – com o rompimento entre Vasco Gonçalves e Otelo Saraiva de Carvalho –, seja entre o Movimento das Forças Armadas e os líderes civis.

Esta divisão no campo revolucionário propiciou as condições para uma articulação entre os setores “moderados” das Forças Armadas e setores civis – com a participação proeminente do PS e partidos de centro e de direita –, com o objetivo de realizar um golpe para, no linguajar de então, encerrar o “Processo Revolucionário em Curso”, e substituí-lo por um “Processo Constitucional em Curso”.

Assim, em 25 de novembro de 1975, chefiados pelo então Tenente Coronel Antônio Ramalho Eanes, ocorreu um golpe militar, sob o pretexto de “impedir um golpe de esquerda” e Portugal ingressou em uma fase de consolidação de um regime democrático-liberal.

Em abril de 1976 – com o apoio do PS, do PPD e do CDS –, o agora General de quatro estrelas Antônio Ramalho Eanes foi eleito presidente da República. Para 1º Ministro, ele indicou o líder do Partido Socialista, Mário Soares…

Com isso, encerrou-se em Portugal a Revolução do Cravos e o país entrou em um período de estabilidade conservadora, enterrando os sonhos dos que esperavam que ela pudesse levar a transformações sociais mais profundas.

Pouco a pouco, sucessivas revisões constitucionais – sob governos do Partido “Socialista” ou de direita – desfiguraram a Constituição Portuguesa, retirando os seus enunciados mais avançados, de caráter anti-imperialista, antimonopolista, anti-latifundiário e socialista. As poucas referências ao socialismo que nela restaram – basicamente no seu preâmbulo – tornaram-se “letra morta” ou mero adereço decorativo…

O LEGADO DA REVOLUÇÃO DOS CRAVOS

Apesar do paulatino desmonte dos avanços da Revolução dos Cravos, após o golpe de 25 de novembro de 1975, o empuxe revolucionário das massas populares foi de tal monta que o fim do regime fascista levou a uma ampla democratização de Portugal, que as forças reacionárias não conseguiram reverter.

Da mesma forma, à direita não pôde acabar com os avanços sociais e as conquistas dos trabalhadores portugueses, seja em relação à liberdade de organização e de luta, seja quanto aos seus direitos trabalhistas e suas melhorias econômicas.

Por fim, mas não menos importante, o processo revolucionário de abril de 1974 acelerou o fim da guerra colonial e a conquista da independência pelas colônias portuguesas, poupando a seus povos enormes sacrifícios e livrando o povo português do peso da opressão de outros povos.

No Brasil, vivíamos nessa época sob uma ditadura militar terrorista que – enfraquecida por uma persistente resistência popular – começava a dar sinais de esgotamento e tentava prolongar a sua vida através de uma “abertura lenta e gradual”, que na verdade era uma tentativa de se institucionalizar.

Não tenho dúvidas de que a Revolução dos Cravos repercutiu no Brasil e contribui para a grande derrota que o povo brasileiro impôs aos generais, nas eleições de 1974.

Por tudo isso, a Revolução dos Cravos, de 25 de abril de 1974, é festejada pelo povo português e pelos povos de todo o mundo!

(*) Raul Carrion é historiador, sindicalista, escritor e político brasileiro. Foi vereador de Porto Alegre e duas vezes Deputado estadual do Rio Grande do Sul. É dirigente nacional do PCdoB

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