60 obras mostram a beleza da resistência à ditadura militar

CAROLINA MARIA RUY (*)

Em 1964, quando o golpe militar foi deflagrado, o Brasil vivia grande efervescência cultural e política. Interromper esse processo foi justamente um dos objetivos dos militares aliados ao governo dos EUA durante a Guerra Fria. Mas, diferente do que queriam os militares, toda aquela efervescência transformou-se em resistência política e cultural.

Pouco antes do golpe completar 60 anos, o André Cintra apresentou a ideia de criar um grupo para selecionar 60 obras produzidas durante a ditadura. Aceitei na hora. E assim nos juntamos a outros quatro jornalistas, Andressa Schpallir, Fabio Ramalho, Susana Buzeli e Val Gomes, e conseguimos apoio do Centro de Memória Sindical, da Força Sindical, da UGT e da CTB.

O trabalho em grupo tem seus desafios. Para facilitar determinamos que cada um apresentaria 10 obras dentro do critério histórico. No fim, a lista seria de todos.

Antes da produção, previmos que poderiam aparecer repetições de artistas, do tipo de arte ou da própria obra em si. Previmos que um ou dois músicos ou cineastas prevaleceriam sobre outros menos conhecidos. E que a profusão de músicas e filmes liquidaria outras expressões.

Para nossa feliz surpresa, foram previsões que não se realizaram. Surgiram poucas repetições e grande diversidade de artistas, do vanguardista ao popular. Buscamos fugir do óbvio.

O resultado mostra uma cronologia cultural de um período que rompeu paradigmas nas artes contestando, abstraindo e buscando ir além de uma realidade violenta. A rebeldia se fazia necessária. Assim como era necessário buscar formas alternativas de comunicar.

Um traço que sobressai desta cronologia é a busca de uma identidade nacional. Neste sentido ela retoma aspectos do nacionalismo anárquico e despojado do modernismo dos anos de 1920 em obras como a reencenação de “O Rei da Vela” (escrita em 1933), pelo Teatro Oficina, em 1967.

Outro fator que unifica o conjunto de obras é a desconstrução das formas e padrões estéticos como oposição a uma sociedade engessada e opressora. Um exemplo é a pintura “Buum!”, de Marcello Nitsche, de 1966. O vídeo-performance “Marca registrada”, Letícia Parente, de 1975, com seu teor angustiante também demonstra esta desconstrução. E ainda, a Capa Branca do álbum Chico Canta, de 1973, em protesto contra a censura da época, pode ser considerada uma obra de contestação.

Também se destaca na lista um forte caráter de denúncia em obras como a foto do “Estudante de medicina em protesto na Cinelândia”, que mostra a repressão policial em 1968, registrada por Evandro Teixeira, “Trouxas ensanguentadas”, de Arthur Barrio, exposta em 1970, o “Vestido de noiva” que Zuzu Angel apresentou no desfile de protesto em 1971, e o filme “Pra frente, Brasil”, de Roberto Farias, lançado em 1982.

A situação dos trabalhadores, as dificuldades de organização, o empobrecimento e o arrocho salarial aparecem no filme de Leo Hirszman “Eles não usam black-Tie”, de 1981, e no “Cartaz para o fundo de greve dos metalúrgicos do ABC”, criado por Elifas Andreato, em 1979.

Há também humor, como a novela “O Bem-Amado”, de Dias Gomes, que foi ao ar no auge da repressão, em 1973, debochando do autoritarismo rançoso e demagogo dos militares através de um texto que até hoje é pertinente.

E há também esperança, expressa nas músicas “O Bêbado e a equilibrista”, de Aldir Blanc e João Bosco, que, lançada em 1979, marcou a Anistia e a volta dos exilados, “Anunciação”, de Alceu Valença, 1983, que foi associada pelo público com o clamor pela volta da democracia no contexto das Diretas Já!, e “Pro dia nascer feliz”, da banda Barão Vermelho, que estourou naqueles anos de 1983 e 1984 exprimindo um sentimento pelo fim da ditadura que se disseminava pela população brasileira.

Assim, em contraste com a dura realidade que o Brasil viveu entre 1964 e 1985, os artistas buscaram formas de demonstrar o horror, o espanto, a audácia da desconstrução, a situação do povo, e também a ironia e a esperança.

Temos então uma produção cultural profícua daquela época que demonstra, acima de tudo, a força e a beleza da contestação.

A ideia de criar essa linha do tempo, obra a obra, foi uma maneira singela de chamar a atenção para esse lado. Entre tanta dor e tantas perdas, a arte contribuiu para que o país pudesse seguir em frente.

(*) Carolina Maria Ruy é jornalista e coordenadora do Centro de Memória Sindical

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