Desindustrialização e miséria no pampa gaúcho pela soja

Gostaria muito de ter mais tempo para comentar ou resenhar os livros que nos chegam de todo o país. Infelizmente, na chamada atual conjuntura (made in Stanislaw Ponte Preta) o tempo é matéria escassa – além do mais, para comentar livros.

De Cachoeira do Sul, no Rio Grande do Sul, já faz bastante tempo, Henrique Hettwer nos enviou seu livro Neocolonialidades no Pampa Gaúcho (d7, 2021).

Basicamente, o livro, ao examinar as mudanças na geografia daquele município gaúcho, expõe como Cachoeira do Sul deixou de ser a capital do arroz, com a introdução da soja sob determinação externa – pois a soja, sob as suas várias formas, é exportada principalmente para a Eslovênia, e esse é o móvel para o seu cultivo naquela localidade.

O autor analisa o neoliberalismo a partir dessas mudanças, inclusive a ação dos governos submissos ao imperialismo. Por exemplo, sobre a famigerada Lei Kandir:

“A cultura da soja evoluiu no Brasil devido às isenções fiscais sobre a exportação do produto, que causaram perdas tributárias dos municípios e estados produtores, sob protestos de parte dos gestores municipais e estaduais, economistas, intelectuais, dentre outros, além de ambientalistas, que reclamam dos impactos sobre terras, águas e a saúde humana, sobretudo sem qualquer reparo.

“Ao longo dos anos acentuaram-se os prejuízos econômicos decorrentes da desoneração das exportações dos produtos primários, a chamada Lei Kandir. Um dos principais efeitos percebidos com a vigência da Lei Kandir é a redução significativa de repasses de ICMS dos estados aos municípios produtores de soja, tal como Cachoeira do Sul, bem como a perda estadual de arrecadação.

“… todas as vendas de produtos do agronegócio para fora do Brasil em 2019 renderam os cofres públicos apenas R$ 16,3 mil em imposto de exportação. A cifra representa 0,000003% do valor total das vendas, ou seja, o estado brasileiro arrecadou um centavo em imposto de exportação a cada R$ 323 mil faturados, pois a legislação permite que o governo altere o percentual tributado para estimular setores específicos da economia, previsto em 30%” (pp. 150-151).

Os resultados econômicos foram, em geral catastróficos, se examinarmos o conjunto da economia. Pois não foi apenas a agricultura que foi afetada pela soja, com a expulsão da até então cultura predominante, o arroz.

Hettwer observa que a indústria que havia em Cachoeira do Sul, integrada ao arroz, foi destruída quando a soja – beneficiada em outros municípios – passou a ser dominante.

Assim, a desindustrialização e a concentração de renda – com o aumento da miséria – foram uma consequência dessa determinação externa pela produção de soja. Ou seja, a transferência do centro de decisões quanto à agricultura, não mais dirigida ao mercado interno, mas agora dirigida ao mercado externo, teve profundas repercussões dentro do município de Cachoeira do Sul, com a desindustrialização e a miséria devastando essa localidade – e não ela apenas – do Rio Grande do Sul.

Vejamos, a partir das mudanças econômico-geográficas em Cachoeira do Sul, as conclusões gerais do autor:

“No espaço geográfico brasileiro perduram e intensificam-se as políticas liberais, concentrando riqueza, segregando multidões, ampliando a presença de capital estrangeiro no país, que alimenta a dependência nacional através da desindustrialização, privatização e desnacionalização das empresas. Em 2018, o lucro líquido dos três maiores bancos privados que atuam no Brasil – Itaú Unibanco, Bradesco e Santander, somou cerca de 56 bilhões de reais, em plena crise que conta com cerca de 14 milhões de brasileiros desempregados, sob um salário mínimo aos empregados de R$ 998,00 nesse ano. Em 2020, com a pandemia de Covid-19, cerca de 70 milhões de brasileiros ficaram por meses à mercê do auxílio emergencial de R$ 600,00 e depois de R$ 300,00, enquanto os bilionários aumentaram suas riquezas, assim como os bancos não perderam seus aviltantes lucros. (…) o Estado detém a força para a solução dos diversos problemas estruturais e sociais do Brasil, contudo é apropriado pela hegemonia do capital” (pp. 233-234).

E logo em seguida:

“A ruptura desse modelo político e econômico contemporâneo, especulador, que desvaloriza o trabalho, o capital, a ciência e a tecnologia nacionais, expropria o orçamento nacional, sob uma mentalidade colonial imposta, exploratória, é fundamental para a emancipação nacional, e estenderia suas derivações no espaço geográfico de Cachoeira do Sul. A retomada de um projeto de desenvolvimento nacional fundado em experiências já exitosas na História do Brasil (…) expressaria novos paradigmas ao progresso de Cachoeira do Sul” (idem).

Depois de alcançar essas considerações gerais, Hettwer volta, outra vez, seu foco para a problemática de Cachoeira do Sul:

“O arranjo produtivo de dois dos principais produtos de nossa balança comercial, primários, a soja e o minério de ferro, exige reconsiderações, que não indicam o desprezo pelas atividades, mas outras premissas, soberanas, de equidade social e de previsão de impactos. Especialmente a soja, cultivada em larga escala em Cachoeira do Sul, apresenta baixo compromisso de soberania e atendimento dos interesses nacionais, extraindo à exaustão os recursos naturais, sem cuidados devidos. Gera poucos empregos, está oligopolizada pelo capital estrangeiro, ameaça os biomas naturais, abusa da toxicidade de venenos com agrotóxicos estrangeiros, polui as águas, adoece pessoas e elimina espécies da fauna e da flora” (p. 234).

E isso tudo, como já apontamos, às custas do Estado nacional – e, portanto, dos brasileiros:

“Tudo isso sem gerar sequer a tributação devida, com a isenção da Lei Kandir. Este mecanismo de desoneração cria uma grande acumulação de capital da cultura da soja, para alguns e para oligopólios, sem repercutir no desenvolvimento das populações dos municípios, concentrando-se em poucos latifundiários que conseguem pagar os pacotes estrangeiros de produção. E, sobretudo, nas transnacionais que detêm a parte mais lucrativa do processo e remetem para o estrangeiro seus lucros. Assim, a desoneração de impostos gerada pela Lei Kandir é um fator de concentração de renda, pois, nominalmente, o PIB cresce, mas não se distribui; assim, gera a segregação social ao não se dividir e reproduzir suficiente valor, sufocando e sendo entrave da geração de outras fontes de renda” (pp. 234-235).

Henrique Hettwer aponta, como consequências dessa sojicultura de terra arrasada, “o enfraquecimento da economia do município e diversos sintomas como a falência de empresas industriais, o elevado desemprego, o aumento da vulnerabilidade social, a perda de arrecadação tributária. Com a fragilização do poder público não se atende dignamente a população, há a perda de representatividade, precárias infraestrutura e capacidade de custeio público. O modelo neoextrativista agrava a concentração fundiária, a expulsão dos agricultores familiares e camponeses, a retração produtiva de diversas culturas de alimentos e do consumo básico. Enfim, aumenta a dependência externa” (p.p. 235-236).

Na época do governo Brizola, no Rio Grande do Sul, Franklin de Oliveira publicou o livro Rio Grande do Sul, um novo Nordeste, coleção de 10 reportagens que o autor publicara no Correio da Manhã, do Rio de Janeiro.

A descrição que Henrique Hettwer faz do impacto desses problemas sobre a população de Cachoeira do Sul faz lembrar o livro de Franklin, publicado há 50 anos:

“Esse conjunto de fatores, por extensão, impacta na decisão dos cachoeirenses em permanecer no município. Desamparados ou despossuídos, jovens, trabalhadores e famílias inteiras, têm migrado substancialmente, buscando melhores perspectivas de condições de vida, provocando a fuga de mão de obra e de cérebros, ampliando a desesperança de desenvolvimento. Ao mesmo tempo, a mentalidade oligárquica, por vezes hegemônica, apropria-se dos possíveis espaços e instrumentos de transformação social para naturalizar essa condição e perpetuar seu domínio a despeito dos interesses da ampla maioria da população” (p. 236).

C.L.

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