Como o Guia Michelin RJ-SP favorece até restaurantes que ficam de fora dele

Matéria escrita por Daniel Salles 

No mundo da gastronomia, não há notícia mais bombástica do que a recusa de algum chef em receber as famosas estrelas Michelin, distribuídas pelo anuário de origem francesa desde 1926. O último a dizer não para o célebre livrinho vermelho, até onde se sabe, foi Francis Mallmann.

No ano passado, o chef argentino anunciou ter recebido uma carta do guia dizendo que um de seus restaurantes seria premiado na primeira edição dedicada a Buenos Aires e Mendoza, lançada em novembro. “Obrigado, mas não quero”, Mallmann teria respondido.

Francis Mallmann disse “não” ao celebre Guia Michelin no último ano / Fotógrafo John Troxell

Ele alegou que recusou a sonhada honraria porque a publicação recebeu cerca de US$ 600 mil do governo argentino a título de patrocínio. Isso, segundo Mallmann, colocou a credibilidade da versão local do Michelin em xeque. Não se sabe se ele iria receber uma ou mais estrelas ou o selo Bib Gourmand, que indica ótima relação custo-benefício. No fim, a edição argentina premiou um restaurante com duas estrelas, seis com apenas uma e distribuiu sete selos Bib Gourmand.

Outro chef que torce o nariz para a publicação é o inglês Marco Pierre White, de quem Gordon Ramsay foi pupilo. Em 1999, antes de sair de cena por um breve período, ele resolveu devolver todas as estrelas que havia conquistado. Em 2018, quando abriu um restaurante em Cingapura, avisou que não queria saber de inspetores do guia por perto. “Eu não preciso do Michelin, nem eles de mim”, declarou. “Eles vendem pneus e eu, comida”.

Polêmicas à parte, raros chefs veem a publicação com maus olhos – principalmente, claro, aqueles que foram premiados com estrelas. A bem da verdade, até empresários do ramo que não figuram no Michelin costumam ser favoráveis à presença do guia na cidade em que atuam. Isso porque a publicação, assim como o Latin America’s 50 Best Restaurants, sediado no Rio de Janeiro no ano passado, aumenta o potencial turístico das cidades contempladas. “Eventos como esses ajudam a posicionar a cidade como um destino de luxo”, diz Fernando Blower, presidente do SindRio, o sindicato de bares e restaurantes do Rio de Janeiro.

Isso atrai turistas que costumam gastar mais do que a média, mas que também acabam frequentando restaurantes que não foram premiados. Nenhum viajante, afinal, almoça e janta em estabelecimentos estrelados todo dia.

Fernando Blower, presidente do SindRio, o sindicato de bares e restaurantes do Rio de Janeiro

Ele acrescenta que premiações do gênero atraem, invariavelmente, jornalistas internacionais especializados em gastronomia, além de críticos e influenciadores relevantes. “Essas pessoas, que ajudam a manter o Rio de Janeiro em evidência no mundo todo, também não se restringem aos restaurantes laureados pelo Michelin ou pelo 50 Best”, afirma Blower. “Fazem questão de conhecer novidades, chefs em ascensão e até nossa comida de rua. É um erro achar que prêmios do tipo não trazem retorno para a cidade ou que favorecem só um punhado de estabelecimentos”.

A festa de premiação do próximo Michelin RJ-SP está marcada para 20 de maio no Copacabana Palace. A cerimônia foi organizada em parceria com a prefeitura do Rio de Janeiro, que também patrocina a retomada da publicação ao país — por culpa da pandemia, ela não era atualizado desde 2020.

Pelo acordo firmado, a Secretaria de Turismo carioca vai repassar R$ 1,5 milhão por ano para a publicação — corresponde às edições de 2024, 2025 e 2026. A prefeitura de São Paulo também se comprometeu em liberar o mesmo tanto para o guia e da mesma forma. Em conjunto, portanto, as duas cidades vão destinar R$ 9 milhões para a retomada da versão brasileira.

A prefeitura carioca também desembolsou mais de R$ 1,9 milhão pelo direito de chamar o Rio de Janeiro de Cidade Anfitriã do Michelin. As duas metrópoles nunca haviam aberto o cofre para a publicação — a carioca, desde 2015, só concedia apoio institucional, o que não envolvia aportes financeiros.

Prêmio 50 Best Restaurantes da América Latina aconteceu no Rio de Janeiro no último ano e já está confirmada a premiação novamente na cidade em 2024
Evento de premiação Latin America’s 50 Best Restaurants aconteceu no Rio de Janeiro em 2023 e terá sua segunda edição na cidade em novembro de 2024 / Divulgação

O retorno do Michelin ao Rio consolida nossa posição de destaque na gastronomia mundial”, declarou Eduardo Paes, o prefeito da cidade, ao anunciar a decisão de sediar a festa do dia 20 de maio. “Temos na cidade mais de quatro mil bares e restaurantes, que empregam 60 mil trabalhadores no setor”. Paes foi além: “Nos últimos três anos, a cidade gerou quase 14 mil novos postos de trabalho na área. Somente no ano passado, foram 5,4 mil novos empregos. Isso é prova de um setor que está em alta. E queremos mais. Vamos atrair mais turistas, mais investimentos e consolidar a cidade também como um dos melhores destinos gastronômicos”.

Na mesma ocasião, Gwendal Poullennec, diretor internacional do guia, declarou o seguinte: “Graças ao apoio da Prefeitura do Rio de Janeiro, estamos encantados em reunir os melhores talentos gastronômicos das duas cidades, bem como celebrar suas vibrantes cenas gastronômicas”.

Na edição de 2020, quatro restaurantes abocanharam duas estrelas: Oteque e Oro, no Rio de Janeiro, e D.O.M e Ryo Gastronomia, em São Paulo. Nenhum empreendimento brasileiro, até agora, ganhou três estrelas, a cotação máxima. Dez restaurantes foram agraciados com uma estrela e 39 receberam o selo Bib Gourmand.

Qual é o impacto, exatamente, de uma premiação do tipo para as cidades contempladas? Publicado em 2019, um estudo da Ernst & Young dá uma pista. “Ao atrair uma clientela mundial, o Guia Michelin contribui para a construção de uma notoriedade duradoura do destino e de toda a sua região”, afirma o documento assinado por Éric Mugnier e Marc Lhermitte, sócios da Ernst & Young.

O estudo ouviu 2.500 pessoas. Do total, 57% disseram que prolongariam a estadia em um destino se soubessem que há nele restaurantes com estrelas Michelin. Mais: 71% afirmaram que restaurantes estrelados servem de incentivo para gastos maiores. Exemplos de cidades que se transformaram em destinos turísticos disputados com a ajuda de premiações gastronômicas não faltam. É o caso de Lima, no Peru, que virou sinônimo de restaurantes imperdíveis depois de sediar o Latin America’s 50 Best Restaurants. O atual melhor do mundo, por sinal, o Central, do chef Virgilio Martínez, se encontra na capital peruana.

Para sediar a versão latino-americana do ranking, no ano passado, a prefeitura do Rio de Janeiro desembolsou cerca de R$ 3 milhões. A festa, que contou com a presença até de chefs que ficaram de fora também foi no Copacabana Palace. Ao abrir a cerimônia, Eduardo Paes anunciou que irá sediá-la novamente neste ano.

O impacto da festa de premiação do novo Michelin RJ-SP, entre outros eventos do gênero, na gastronomia carioca em geral é o tema de uma das mesas-redondas do próximo SindNews, no dia 14/5. Organizado pelo SindRio, o evento deverá reunir cerca de 250 pessoas no Exc Rio, no Jockey Club Brasileiro.

O debate sobre eventos gastronômicos realizados no Rio de Janeiro – e o reflexo deles no setor de restaurantes como um todo – terá a participação de Otávio Leite, consultor da Fecomércio RJ, e de Adriana Homem de Carvalho, diretora de turismo social, hotelaria e alimentação do SESC Rio de Janeiro (confira a programação completa do SindNews e mais informações em sindrio.com.br).

Fonte: https://www.cnnbrasil.com.br/viagemegastronomia/gastronomia/como-o-guia-michelin-rj-sp-favorece-ate-restaurantes-que-ficam-de-fora-dele/