Cesta básica mais ampla abre brecha para elevar margem de lucro, diz Appy

ADRIANA FERNANDES E IDIANA TOMAZELLI
BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS)

O secretário extraordinário da Reforma Tributária do Ministério da Fazenda, Bernard Appy, vê risco de um eventual aumento da lista de produtos da Cesta Básica Nacional, que terão alíquota zero, ser usado pelas empresas para elevar a sua margem de lucro, sem que o efeito da desoneração tributária chegue ao consumidor final.

Em entrevista à Folha de S.Paulo uma semana após o envio ao Congresso do primeiro e mais importante dos três projetos de regulamentação da reforma tributária, ele alerta que os setores que estão no meio da cadeia produtiva têm mais poder de mercado para fazer esse movimento.

Para ele, o mecanismo de cashback (devolução do imposto) é mais importante.

“Mas é engraçado que as pessoas, as entidades, que estão defendendo incluir mais produtos na cesta básica são exatamente aquelas no meio da cadeia. Por que será?”, questiona.

A lista da cesta básica é tema central, pois seu tamanho impacta a alíquota de referência dos tributos, hoje calculada em 26,5%.

O setor de supermercados e o agronegócio pressionam por mais produtos e criticam o governo por não ter colocado na lista proteína animal, como carnes e peixes -inclusão que elevaria a alíquota para os demais.

AMPLIAÇÃO DAS EXCEÇÕES

“O nosso trabalho é o de fazer com que as decisões do Congresso sejam informadas. E que para eventuais ampliações de exceções, tratamentos favorecidos, se entenda qual é o efeito que tem sobre a alíquota de referência. Mas a decisão é do Congresso.”

LISTA DA CESTA BÁSICA

“O governo fez uma opção de enviar o projeto mantendo as carnes na alíquota reduzida, sabendo que, na média do país, isso significa uma redução da tributação em relação ao que é hoje. Não é enorme, mas é uma redução. O Congresso vai ter que tomar a sua decisão, sabendo quais são os custos e os benefícios. Não estamos privando ninguém de acesso à alimentação. Ao contrário, está sendo reduzido o custo de acesso à alimentação no país. Não necessariamente desonerar carnes é a melhor política distributiva que eu posso fazer.”

PRESSÃO PARA AUMENTO DA LISTA

“Todo mundo sabe que a gente gostaria de usar mais cashback e menos alíquota reduzida. Quando se usa cashback, você tem certeza de que está devolvendo o imposto para as famílias que consumiram aquele bem. Dependendo de qual é a estrutura de mercado, na hora que você reduz a tributação, não necessariamente isso se converte em preço menor para o consumidor. Depende muito da velocidade, preço, da demanda e oferta de cada etapa da cadeia. Isso pode se reverter no aumento da margem [de lucro]. De quem? De quem tem mais poder de mercado dentro dessa cadeia. Não estou dizendo que vai ser esse efeito. Mas é engraçado que as pessoas, as entidades que estão defendendo incluir mais produtos na cesta básica são exatamente aquelas no meio da cadeia. Por que será?”

IMPOSTO SELETIVO SOBRE BETS

“Fiquei muito chateado porque o presidente da Abras [Associação Brasileira de Supermercados, João Galassi] pegou uma troca de conversa pessoal e passou para a imprensa. Não se faz isso, tá certo? É uma forma incorreta de relacionamento com o poder público. O que eu falei é que a gente iria avaliar, mas não está feita essa avaliação ainda.”

TAXAÇÃO DAS PLATAFORMAS DIGITAIS

“Não vejo nenhum motivo para dar uma vantagem tributária para a venda de um produto estrangeiro por uma plataforma digital. Não estou falando em tributar, nem menos, nem mais. Uma tributação isonômica. Não está se mudando a isenção do Imposto de Importação até US$ 50. Além disso, já está tendo a tributação hoje da alíquota de ICMS, de 17%. Nós estamos falando de uma diferença muito pequena em relação àquilo que é feito hoje. Se vocês discordam [a imprensa], coloquem isso explicitamente: “Nós achamos que o produto estrangeiro tem que pagar menos imposto do que o produto nacional”. Escrevam. Bota um editorial do jornal, sei lá, faça alguma coisa assim.”

IMPOSTO SELETIVO X CARGA TRIBUTÁRIA

“Vai sair uma nota sobre Imposto Seletivo [com as premissas para chegar a alíquota média de 26,5%]. Para bebidas alcoólicas, vai manter a carga tributária atual. No caso dos minerais extraídos, foi suposto como se fosse ter a cobrança da alíquota [máxima] de 1%, embora o valor ainda será definido depois. Mas basicamente a hipótese foi de manutenção da carga tributária, daquilo que já é tributado hoje. Mais 1%.”

TAXAÇÃO DAS EXPORTAÇÕES

“Foi uma decisão do Congresso, não do governo. O Imposto Seletivo é monofásico, só incide uma vez [não cumulativo], não dá crédito. O que está sendo tributado, que é insumo, é basicamente só o minério e o petróleo. Não necessariamente isso vai virar custo. Exemplo: o preço aqui é formado por uma paridade de preço de exportação. É o preço internacional. Como lá fora ela não vai poder repassar esse aumento de preço, a venda dela dentro [do país] também acaba tendo o mesmo preço. Portanto, isso não vai virar um aumento de custo. Vai virar uma redução de rentabilidade da empresa que está na cadeia. É um efeito muito pequeno perto do tamanho do tributo como um todo.”

ARRECADAÇÃO COM IMPOSTO SELETIVO

“Não é um imposto fiscal [para arrecadar mais]. É um imposto extrafiscal. No fundo, essa tributação da extração de petróleo e de minério é equivalente a um aumento dos royalties de petróleo ou da Cefem [Compensação Financeira pela Exploração Mineral]. Se você tivesse aumentado em 1% os royalties de petróleo ou a Cefem, não estaria tendo esse ruído que está tendo agora.”

DIVERGÊNCIAS DOS ESTADOS

“Não tenho dúvida de que o texto enviado saiu melhor pelo fato de que foi feito conjuntamente com estados e municípios. Desde o começo, ficou muito claro que eles poderiam ter algum ponto de divergência e explicitar esses pontos na hora em que o projeto fosse enviado. O que surpreendeu foi que, na nota que eles soltaram, eles colocaram temas que simplesmente são objetos do segundo projeto. Não quebraram a questão de confidencialidade. Só acho estranho colocar que tem dissenso sobre questões que ainda nem sequer tem posição. Essa é a parte que ficou mais chata. O que foi colocado de cashback no projeto é estritamente o que foi acordado. Eles falaram: ‘Nós queremos que tenha um cashback geral baixo’. Ficou em 20%, para que cada estado, cada município tenha autonomia de, por lei própria, ter um cashback mais alto.”

SUBSTITUIÇÃO TRIBUTÁRIA

“Os estados queriam porque queriam que tivesse substituição tributária. Nós temos dúvidas se cabe substituição tributária em um projeto como esse. Eles resolveram explicitar que tem uma divergência. Eu não queria explicitar a divergência. Vamos continuar discutindo. Se a gente chegar a um acordo de uma coisa que seja operacionalmente factível, que não gere um inferno do ponto de vista operacional e que atenda, ok, podemos incorporar, mas não precisa isso.”

IMPASSE SOBRE COMITÊ GESTOR

“É tema do segundo projeto [ainda a ser enviado]. Não está decidido a questão do orçamento [passar pelo Legislativo]. Eles estão criando um problema, uma objeção técnica, jurídica, que foi levantada em algum ponto da discussão, mas não tem nenhuma definição. Não tem perda de autonomia federativa.”

APROVEITAMENTO DO CRÉDITO

“A emenda constitucional já previu que seria possível ter o crédito vinculado ao recolhimento [do imposto]. O split payment é uma segurança de que, se o fornecedor ficar inadimplente, quando o adquirente pagar o fornecedor, ele vai ter direito ao crédito. Não estamos criando nenhuma restrição ao aproveitamento de crédito. Qual é a condição para você ter o seu crédito? Se o seu fornecedor pagar em dia, você já vai ter o seu crédito automaticamente. Se ele ficar inadimplente, a condição para você ter crédito é você ter pago ele. As pessoas querem tudo. Elas querem ter o crédito e não querem ter [a obrigação de pagar].”

NOTAS FRIAS

“[O split payment] É importante porque, infelizmente, no Brasil temos um problema muito sério de nota fria. Ninguém vai preso, ao contrário do que acontece em outros países. Aí você [do governo] tem que provar que o adquirente agiu de má-fé e sabia que aquela nota era fria. É muito difícil conseguir provar isso. Ao fechar a possibilidade de emissão de nota fria, estou reduzindo muito a sonegação. As pessoas olham um lado e não olham o outro. Eu quero ver um advogado tributarista que ajude a gente a colocar na cadeia um fraudador que emite nota fria. A hora que eles fizerem isso, ok, vamos rediscutir o modelo.”

ABATIMENTO DE GASTO COM PLANO DE SAÚDE

“O plano de saúde vai ser tributado na margem [diferença entre receitas e obrigações com coberturas]. Nós estamos falando de 2% do valor do plano de saúde. Não tem risco nenhum, chance zero [de o empregado perder o plano]. O plano de saúde vai continuar sendo dedutível do Imposto de Renda. Isso não está sendo mudado. Vou falar um exemplo pessoal. Eu tinha um plano de saúde lá na empresa que eu tinha, ele subia todo ano, no mínimo, 10% acima da inflação. Ou seja, a ineficiência do plano não inviabiliza comprar o plano.”

GRUPOS DE TRABALHO PARA A RELATORIA

“Ainda não ficou claro como é que vai ser feita a relatoria na Câmara. Tem alguma proposta do presidente [da Câmara, Arthur Lira], mas vamos aguardar.

O projeto tem que ter consistência interna. Existe uma boa vontade do Congresso em avançar com essa pauta.”

RAIO-X

Bernard Appy, 62

Economista, secretário extraordinário da Reforma Tributária do Ministério da Fazenda e um dos autores técnicos da proposta de 2019 que baseou a reforma tributária aprovada pelo Congresso Nacional. Ex-diretor do CCiF (Centro de Cidadania Fiscal). Ex-secretário-executivo e de Política Econômica do Ministério da Fazenda (2003-2009). Foi diretor de Estratégia e Planejamento da BM&F Bovespa (atual B3) e sócio-diretor da LCA Consultores.

Fonte: https://jornaldebrasilia.com.br/noticias/economia/cesta-basica-mais-ampla-abre-brecha-para-elevar-margem-de-lucro-diz-appy/